Beleza feminina: paixões e violências – O caso dos rostos profanados

Beleza feminina: paixões e violências – O caso dos rostos profanados

Mónica Biaggio. EOL- AMP. Corporeidad. Aguada 3.

Mónica Biaggio. EOL- AMP. Corporidade. Aquarela 3.

Beatriz García Moreno – NEL- AMP

Pode-se afirmar que a beleza relacionada com o feminino pode-se converter em um ideal a se possuir que incita não somente o desejo, mas também as violências que se enquadram dentro da ampla gama de crimes contra a mulher, que têm se manifestado nos últimos tempos. É o caso das mulheres cujos rostos foram queimados com ácido, prática frequente em países como a Índia e o Paquistão, e que, nos últimos anos, fez-se presente também na Colômbia, primeiro ligado à guerra, porém agora em tempos de queda do Nome-do-Pai, como parte da lista cotidiana de crimes contra a mulher. Nos testemunhos das mulheres agredidas e dos agressores ao serem interrogados pelo fato, é comentado que o ato esteve acompanhado de frases como: “se não é minha, não é de ninguém”; ou “isso acontece por ser bonita”.

Tendo como referencia esse contexto, e com apoio no pensamento de Jacques Lacan e nas contribuições  de Jacques-Alain Miller e Éric Laurent, tomamos esses atos, a partir da afirmação que a ação violenta surge de uma paixão gerada pela beleza, a qual se dá no cruzamento da impossibilidade de possuí-la, e o insuportável que ela presentifica. Mas, o que é a beleza e que paixões a acompanham? Por que o lugar preferido para a agressão é o rosto? É, por acaso, o olhar que incita a ação violenta? Diante da perda do rosto, que corpo se revela mais além da imagem do corpo? Quais caminhos se abrem às mulheres cujos rostos foram profanados?

Éric Laurent em Los objetos de la pasión recolhe apontamentos de Lacan sobre as paixões, expostos em diferentes momentos de seu ensino, nos quais diferencia paixões de afetos e coloca que à diferença de Freud, que pensava estas em oposição à representação, Lacan busca enodar afeto e representação, e isso implica a presença do corpo, e um espaço para introduzir o termo paixão, não entendida como o que se opõe à sabedoria, nem como o que se deve evitar para sustentar a “justa medida” como era concebido na época clássica, mas como um enodamento entre o inconsciente e um real de gozo que se experimenta no corpo. Esse entendimento da paixão encontra um momento inaugural no século XII quando aparecem as místicas e seus discursos, e o corpo se faz presente.

Lacan divide as paixões em duas: do ser e da alma. As paixões do ser se referem à falta em ser e estão relacionadas com o Outro em nível fantasmático. São paixões de amor, ódio e indiferença que carregam ações: amamos, odiamos, somos indiferentes. Elas poderiam estar relacionadas com a necessidade de converter o Outro em um bem que se possui ou se rechaça, que, no caso das mulheres queimadas com ácido, pode se relacionar com a expressão “se não é para mim, não é para ninguém”. A beleza se oferece a quem comete o ato violento, como um significante ideal que poderia completá-lo como sujeito, tamponar a falta e abrir-lhe o caminho à felicidade e à beatitude, as quais, segundo Lacan em Televisão2, fazem parte das paixões “da alma”. São paixão do parlêtre que Miller, em Extimidad, trata como “paixões do objeto a3, que vão mais além do corpo-imagem, e permitem uma presentificação do gozo. As paixões desatam ações nas quais o objeto e o ideal se confundem, nas quais o objeto a, ao mesmo tempo em que causa o sujeito, pode aniquilá-lo. No caso da queimadura dos rostos, parece que, ao não poder alcançar o objeto, prefere-se apagar isso que perturba. Essa forma de paixão aponta a beleza em conexão com o estranho, pois, ao ultrapassar a barreira do belo, tampona-se o buraco do real ao invés de bordeá-lo e fazer existir a ausência4, como sugere a obra de arte que se vale da beleza nessa operação. Ao atacar o rosto que singulariza uma mulher, se a universaliza se a desidentifica.

O empuxo da beleza e a construção de dispositivos.

Na relação entre os sexos, a beleza, concentrada de modo particular no rosto, faz parte da mascarada desde que a mulher consinta em ser objeto do fantasma do desejo do homem, mas, quando se oferece como atração para o amor, também pode se converter em empuxo para o ódio e a violência, não somente pela impossibilidade de possuir o objeto desejado, mas porque a beleza, enquanto última barreira contra o real, como o propõe Lacan na Ética da psicanálise5, não deixa de ser perturbadora, e no enigma que a encerra, não cessa de convidar a um gozo não-todo, ilimitado, que não se pode localizar nem pegar, o qual empuxa a ir mais além da norma estabelecida.

Nesse Seminário, indaga sobre a função do belo, e o situa no cruzamento com o desejo cujo limite, diz: é o ultraje. Seu argumento se desenvolve através da tragédia de Antígona, presa em uma ação que a situa entre a vida e a morte, na qual o cruzamento do belo e do desejo se dá, diz Lacan, em uma relação ambígua: de um lado, o belo aparece na mira do desejo, e, por isso, parece que o belo suspende o desejo, desanima-o, e, inclusive, faz pensar que este poderia se eliminar do registro do belo. No entanto, complementa que ambos se cruzam de modo misterioso em um limite designado como ultraje, diz ainda, o belo parece ser insensível ao ultraje. O belo em sua função singular ao desejo, não engana, o desperta e o acompanha enquanto tem estrutura de atração. O cruzamento entre belo e desejo parece se dar na margem da dor, mas não da dor do masoquismo, que, de acordo com Lacan, é um bem, mas de um belo com sua crueldade e sincronia.

Em seu desfile da morte, Antígona encarna um gozo Outro que não se pode alcançar um gozo que Lacan relacionou com as místicas, com Joyce6, e com Marguerite Duras, conforme seu comentário em O arrebatamento de Lol Stein7, a homenagem que ele fez à autora8. Um gozo deslocalizado, e que se apoia na alma, como indica a palavra arrebatamento de Lol. V. Stein, quando é a beleza que opera, a beleza que, para a psicanálise, diz Laurent, não é outra que a mesma presença de um corpo mais além da imagem especular e do destino simbólico passado pelo Outro; e acrescenta que, ante tal situação, cada um compõe “complicados dispositivos” para se dotar de um.

No caso de Lol, a perda do corpo-imagem está relacionada com a cena, no início do relato, que ocorre no salão de festas do cassino de T. Beach, quando seu noivo, Michael Richardson, que nessa noite estava destinado a ela, e para quem ela se havia preparado com seu traje longo e sua nudez, como diz Lacan, na homenagem, é raptado por uma mulher, Anne Marie Streter, a qual chega ao lugar acompanhada de uma filha que foge do baile. Desde que entra ela prende seu noivo em uma dança que une seus corpos, e como assinala Catherine Lazarus-Matet, em um “instante fulgurante” captura seu olhar enquanto “sua atenção estava subjugada por inteiro”9. Assim, Lol se fixa em um lugar, como nunca antes havia estado, e esse fascínio somente parece se romper quando o casal sai do salão. Nessa ruptura, de acordo com suas palavras, que a situa em um não estar, em um lapso aberto que durou dez anos, no qual se casou e teve três filhos e levou uma vida adaptada ao estabelecido. Sobre essa época, ela diz a seu amante, Jacques Hold, “Sim, já não estava em meu lugar, eles me levaram […], não compreendo quem está em meu lugar.”

Ao final desses dez anos, Lol encontra, por acaso, sua antiga amiga e companheira de infância, Tatiana, que também presenciou a cena do baile, e descobre que, ainda que esta esteja casada, tem uma relação secreta com ele que é seu amante, Jacques Hold. Ela decide segui-los até a casa dos encontros onde se reúnem, e, da relva que havia enfrente olha através da janela aberta como Hold lhe tira o vestido eaparecer a mulher “desnuda, desnuda sob seus cabelos negros”10. Essa cena, diz Lacan, mais que reatualizar o acontecimento do baile, refaz o nó que é o que aperta e causa o arrebatamento de Lol, que a devolve a um lugar do qual não poderá mais se desprender. Pode-se dizer que o objeto (a) olhar se converte em objeto de sua paixão, ele que dá o lugar que ela nunca teve, e a converte em parte do quadro, em mancha que olha e captura; e que, a partir disso, captura os demais, o mesmo que Lacan, na sua homenagem à escritora, belamente começa dizendo:

“Arrebatada. Evoca a alma e é a beleza que opera. Nesse sentido, ao alcance da mão, alguém lança como pode, como símbolo.

“Arrebatadora é também a imagem que nos imporá a figura ferida, exilada das coisas, que ninguém se atreve a tocar, e que se torna sua presa.”11

Hold também fica preso no arrebatamento, “disposto a amar a perfeita Lol ”12 e carregar com a angústia e o arrebato que lhe acontece; e, desse modo, libera o leitor, que fica preso no brilho desta, em sua beleza, seu desejo e seu gozo, e nesse corpo “a três” que se compõe.

Lol tem asas de anjo, como Lacan disse ao decifrar seu nome13, presa na paixão pelo olhar, fica petrificada em uma atitude de arrebatamento que, talvez, pode se relacionar com a beatitude. À pedra alude seu sobrenome, Stein, enfatiza Lacan, e acrescenta, além disso, há o V. de  Tesoura, o que parece assinalar um corte, asas cortadas. Lol está fixa na cena. Seu esvaziamento ficou preso naquele momento do baile, porém sua atualização aconteceu a partir da cena da amiga despida pelo amante, onde, a modo de mancha, o olhar aparece e a enlouquece. Ela deixa tudo, sua família, seus filhos, para retornar a relva, de onde pode, através da fenda, do enquadre que lhe oferece a janela, ver o que ali acontece.

Lol perde seu corpo quando ele é arrebatado por outra mulher que a deixa vazia, e somente o encontra na amiga com seus cabelos longos e sua nudez, a qual não cessa de olhar de longe, enquanto seu amante a desnuda. Lol constrói um corpo que vai mais além da imagem, um corpo buraco que dá no objeto a.

A agressão à beleza vai mais além do fato de afetar a imagem do sujeito que produz júbilo, e que oferece ao Outro sua aprovação, ela atenta contra um gozo-Outro insuportável, que escapa e não se pode pegar.

O rosto profanado e as buscas da reconfiguração.

O rosto, que é o foco da agressão com ácido, além de conter os traços e as marcas que identificam cada indivíduo, foi considerado historicamente como o espelho da alma; ele é o que deixa ver as virtudes e os defeitos, enfim, as paixões de cada um. O rosto, prosopon, para os gregos, era o mais importante de cada sujeito, ele encarnava o enigma enunciado por Platão no Banquete, quando Alcebíades dizia sobre a beleza de Sócrates estar mais além da aparência de Sileno, e se referia à pedra preciosa mantida, agalma, e isso é o que, como diz Miller14, cria um ponto de estranheza, de extimidade, de real, que, ao mesmo tempo, atrai, intimida e repele.

No caso da mulher, o rosto é o que parece concentrar os traços de sua beleza. Nos jogos de amor, quando se oferece a ser contemplado, o enigma não tarda a aparecer unido à perturbação, e, talvez, à presentificação de algo sinistro, de um gozo que se oferece ao modo da cabeça de Medusa, o qual petrifica quem lhe dirige o olhar. Trata-se do objeto a olhar que Lacan extrai e apresenta, como assinala Miller15, como o mais desagradável, o mais evanescente, o que a tela tão somente prende mediante uma anamorfose, a qual requer um enquadre mais além do ponto geometral.

Se o encontro com a primeira imagem no espelho produz júbilo pelo reconhecimento de uma forma que tem a capacidade de preencher, como expõe Lacan no Estádio do Espelho16, ela não se sustenta por si mesma, mas requer o reconhecimento do Outro, que lhe outorga um corpo simbólico, e uma modelação permanente ao longo de vida, enquanto que é o objeto a em seu afã de satisfação, é o que a enforma17 e de-forma. No corpo-imagem, aquele que o Outro reconhece e permite circular no simbólico, a pele se faz de invólucro. Ela bordeia cada um dos buracos do corpo e dá conta das marcas produzidas pelo significante, pela palavra, pelo gozo. É a pele a envoltura da imagem-forma no espelho que circula no simbólico e se esgota no tempo com a ação do real, o que consome nele o encontro com o ácido, enquanto se põe de presente o corpo-saco, habitado e esburacado pela pulsão.

Os rostos queimados apresentam a perda da forma encontrada no espelho do corpo-imagem que o parlêtre crê ter. Eles perdem a imagem que lhes dão consistência e descobrem o cruzamento de um limite, o ódioenamoramento, mas também o enigma do objeto a que enforma, de novo insistindo em se presentificar, em encontrar outra aparência que não a sua primeira.

Os corpos-rostos-imagens agredidos e arrebatados pelo ácido cedem ao vazio do espelho e a um corpo-saco-pele informe esburacado, puro envoltório das paixões, o qual, ante a falta de consistência imaginária e do reconhecimento que lhes permite se localizar no simbólico situa-se em um limbo sem forma, o que, em um primeiro momento, se oferece sem atalho algum.

Lacan, no Seminário 23, El Sinthome, quando fala de A Escrita do Ego18, diz que o parlêtre idolatra seu corpo, e faz de tudo, para aparecer belo não somente a si mesmo, mas para ser olhado pelos demais; e, por isso, quando o corpo-imagem-símbolo cai, requer ações diferentes para construir um corpo onde a pulsão se satisfaça. Nos casos estudados das mulheres queimadas com ácidos se pode identificar ao menos duas respostas diante do fato traumático, aquelas que tratam pela via da restituição, de construir seu rosto a partir do que restou, acompanhadas, muitas vezes, por mulheres que também sofreram o acidente, como querendo reconstruir umas às outras, organizadas em fundações cujo propósito é reconstruir e fazer ações para que isso não volte a acontecer; e aquelas que parecem identificar-se com a posição de vítima, e se convertem em buracos – gozo sem rosto para o desfrute dos outros, como é o caso de uma mulher que perdeu seu rosto pelo ácido, e cobre seu rosto e sua cabeça para trabalhar em um cabaret, fazendo striptease, com o nome de “a mulher sem rosto”.

Tradução: Gustavo Ramos

Notas
LAURENT, Éric, Los objetos de la Pasión. Tres Haches: Buenos Aires, 2001.
2LACAN, Jacques, “Televisión” (1973) en Otros Escritos. Paidós: Buenos Aires,2012. pp. 535-572.
3MILLER, Jacques-Alain, Extimidad (1986). Paidós: Buenos Aires, 2010. pp. 464-468.
4Sobre la belleza en relación con la posiblidad de bordear el agujero ver: WAJCMAN, Gérad, El objeto del siglo. Amorrortu: Buenos Aires, 2001. p. 161.
5LACAN, Jaques, El Seminario libro 7, La ética del psicoanálisis(1959-1960).Paidós: Buenos Aires, 2003. pp. 278-289.
6LACAN, Jacques, J. El Seminario libro23,El Sinthome(1973). Paidós: Buenos Aires, 2006. pp.141-153.
7 DURAS, Marguerite, El arrebato de Lol V. Stein, Tusquets Editores, México, 2013.
8LACAN, Jacques, “Homenaje a Marguerite Duras, por el arrobamiento de Lol. V. Stein” (1966), en Otros Escritos, Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 209-216.
9LAZARUZ-MATET, Katherine “El instante eterno de Lol” en MILLER, Jacques-Alain Los usos del lapso, Paidós: Buenos Aires, 2005. pp.483-512.
10 LACAN, Jacques, ibid., p. 213.
11 LACAN, Jacques, ibid., p. 209.
12LACAN, Jacques, ibid., p. 212.
13 LACAN, Jacques, ibid., p. 209.
14 MILLER, Jacques-Alain, ibid., pp.94-98.
15MILLER, Jacques-Alain, “La imagen reina” en Elucidación de Lacan, Paidós: Buenos Aires,1998. pp. 577-593
16LACAN, Jacques, “El estadío del espejo” en Escritos I. Paidós: Buenos Aires, 1998. pp. 86-93.
17 LAURENT, Eric, “Más Allá del Narcisismo” en MILLER, Jacques-Alain. 2013. El lugar y el lazo. Paidós: Buenos Aires, 2013. pp. 67-75.
18LACAN, Jacques, J. El Seminario libro 23,El Sinthome(1973). Paidós: Buenos Aires, 2006.pp. 141-153.

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