
Nicolas Bertora. Mestrado ICdeBA-Unsam. Técnica: desenho.
Anna Aromí e Xavier Esqué – AMP
A psicose extraordinária está cada vez mais rara nos consultórios dos analistas. É fato. A neurose comprovando-se para si mesma também já não é tão frequente como era. Pouco a pouco, o campo do ordinário vai crescendo e a exigência diagnóstica também muda de tom.
O elemento diferenciador
Em uma época, para localizar-se na clínica, os psicanalistas buscavam o pai em cada novo paciente: se tinha tido ou não, se tinha operado e, se sim, com quais efeitos. O elemento diferenciador entre neurose e psicose era buscado no pai.
Com o Nome-do-Pai, Lacan realiza uma separação com o pai da realidade, ou seja, com a novela edípica. O assunto se complexifica com a pluralização dos Nomes-do-Pai e, com as psicoses ordinárias, estamos vendo se renovarem, na clínica e no discurso, as perguntas sobre o desencadeamento.
Até pareceria que o elemento diferenciador para nos orientar se deslocou do pai para o desencadeamento. O desencadeamento, entendido como localizador de uma irrupção do real, não apresenta problemas nas psicoses francas – por isso, elas são francas –, mas há todo um debate em relação às psicoses ordinárias, para as quais se cunharam os termos neodesencadeamento, desligamento, desconexão, etc.
A questão gira em torno de as psicoses ordinárias serem psicoses que já desencadearam tempos atrás, por exemplo, na infância, ou que ainda não desencadearam ou que não seriam desencadeáveis – e, nesse caso, quais seriam os elementos que as diferenciariam das neuroses.
Na clínica analítica, o elemento diferenciador das estruturas não se encontra diretamente. Ele não se localiza senão através de suas consequências. É deduzido por seus efeitos, enquanto a clínica é aquilo que vem no lugar dessa falta: a clínica do caso a caso.
Na clínica do caso a caso, tal como a entendemos orientada pelo real, o gozo não pode ser diferenciado claramente, é um contínuo. Por isso, hoje, a clínica consiste em localizar precisamente como cada um se arranja com o real, como cada um se amarra, se desamarra e se reamarra. Trata-se daquilo que, hoje, consideramos diferenciadores de como cada um se amarra. O elemento diferenciador entre os falasseres é o sinthoma.
A igualdade clínica fundamental
A verdade das coisas humanas, diz Jacques-Alain Miller, é a curva de Gauss. Nessa perspectiva, existe uma “igualdade clínica fundamental” entre os falasseres.
Se tomamos o binômio neurose/psicose não como uma oposição, mas como uma curva de Gauss, ele deixa de ser um binômio para, então, passar a se representar como um continuum em que o extraordinário se situa nos extremos e o campo ordinário se expande ocupando a parte central.
O que essa curva expressa é que não apenas a psicose desencadeada rareia nos consultórios. Isso também acontece com a neurose em sua apresentação mais clássica. A neurose parece ter se ordinarizado seguramente pelas mesmas razões que a psicose, ou seja, como consequência do discurso da ciência e efeito de uma medicalização generalizada.
Então, todos ordinários até que se prove em contrário? E como provar em contrário?
É por isso que é preciso comprovar uma neurose. Que a neurose não possa ser um “semblante compensatório” quer dizer que, como a psicose ordinária, tampouco ela deveria ser um buraco sem fundo onde colocar casos duvidosos ou imprecisos. As dúvidas devem ser expostas e resolvidas, as imprecisões têm que ser definidas. Comprovar quer dizer isso.
A neurose é algo construído e preciso, diz Miller, que tem estabilidade e constância. É importante ressaltar aqui o termo construído, porque remete à infância como tempo de construção de uma resposta para a existência, para o real de uma existência sexuada. A neurose infantil é o tempo de tecer uma resposta com o pai para o enigma do real. Para o real do sexo que, na neurose, se localiza, primeiro, na pergunta sobre o Desejo da Mãe e, depois, no enigma do Outro sexo.
Comprovar uma neurose quer dizer demonstrar que o grampo entre os registros inclui o elemento paterno, mas não de qualquer maneira, senão daquela forma precisa que Lacan chamou de Nome-do-Pai. É ao redor desse ponto que se organiza sua estabilidade e sua constância. O Nome-do-Pai sustenta o grampo do sintoma, que é a espinha dorsal de toda neurose.
Salvador Dalí é, ao revés, um caso paradigmático nisso. Não se pode dizer que, para Dalí, seu pai não tenha contado em nada. Contou e muito, como ele mesmo não deixou de constatar em seus escritos. Contudo, ele não contou com um pai no qual se apoiar para responder a sua existência como ser sexuado, ou seja, para responder à presença do sexo como alteridade absoluta do gozo. Para Salvador, desde muito jovem, ficou claro que, na relação com o gozo, teria que se arranjar sem seu pai. Sua invenção genial foi construir-se uma vida e uma obra para se converter no salvador da pintura.
Três critérios para comprovar uma neurose
Comprovar não é o mesmo que classificar. Há um passo, que é um passo de exigência analítica.
Miller propõe que são necessários pelo menos três critérios para comprovar uma neurose: encontrar provas da relação do sujeito com a castração, encontrar uma diferença nítida entre Eu e Isso, e encontrar um supereu claramente diferenciado. Vamos por partes.
– É preciso buscar as provas da castração não no campo do próprio sujeito, mas no campo do Outro. É ali que a castração pode ser comprovada.
Se seguimos com o caso de Dalí, fica evidente a ausência de qualquer registro da falta. Nada era impossível para ele. É certo que ele reescreveu sua vida para ajustá-la conforme lhe fosse conveniente, como certamente cada um faz, mas, no seu caso, não há registro da perda, registro no sentido de que uma perda causasse efeitos. Por exemplo, não há registro de nenhum luto pela morte de sua mãe. Tampouco há ciúmes diante do nascimento de sua irmã. A diferença está estabelecida, mas se trata de uma diferença baseada na imagem de um Outro enquanto completo. O Outro não está castrado.
– É preciso buscar as provas de uma diferenciação nítida entre Eu e Isso na relação entre significante e pulsão, entre Outro e objeto. Aqui, o elemento diferencial remete à questão sobre onde o sujeito situa seu objeto: no campo do Outro ou em seu próprio bolso.
Em Dalí, há uma prova irrefutável da confusão de ambos os campos na sua relação com a escritura: a metonímia, que encontramos em muitos de seus textos, é testemunho dessa não separação entre linguagem e pulsão. Dalí não se faz perguntas: ele tem todas as respostas.
– É preciso buscar as provas da existência de um supereu claramente diferenciado, porque elas indicam a inscrição da Lei. O supereu é um resto do Édipo, é um índice da incidência paterna e é aquilo que localiza o gozo no sujeito. O imperativo superegóico “Goza!” é um índice de que o gozo não se encontra no campo do Outro, mas no próprio corpo.
Sabe-se que o gozo do corpo não deixou de ser problemático para Dalí e que um dos modos de tratá-lo foi com Gala. Mesmo assim, a localização mais nítida da ausência do supereu encontramos na nenhuma presença da culpa. Em seu lugar, encontramos a ironia, que não falta em cada uma de suas intervenções e escritos.
Reconhecer a psicose ordinária
Há uma continuidade de gozo sobre a qual se apoia a igualdade clínica fundamental entre os falasseres, representada pela curva de Gauss, mas também há uma descontinuidade entre neurose e psicose que responde a uma necessidade não apenas diagnóstica senão de comprovação.
Para o Lacan da “De uma questão preliminar”, o desencadeamento rubrica a estrutura da psicose no sujeito. Ali já se manifestaram a desconexão do Outro e a regressão tópica ao estádio do espelho. Na psicose franca, entendida como o outro extremo da curva, o desencadeamento é a comprovação a céu aberto de um real desamarrado.
Porém, a clínica deduzida do último Lacan, na qual o Outro está perfurado pelo real, torna-se irônica. A metáfora paterna já não se distingue tanto daquela delirante.
Se todo mundo delira é porque falar é delirar sobre o real. Falar é inventar uma maneira de envolver o real com a linguagem. Falar do pai, como falam os neuróticos em análise, é um delírio como outro qualquer, como Dalí falava de Guilherme Tell ou de suas próprias deposições.
Se o fato de delirar não é privativo de uma estrutura, já que faz parte do aparelho da palavra, como reconhecer uma psicose ordinária?
Na neurose, o sintoma trabalha sozinho. Cumpre sua função de enodamento sem que o sujeito necessariamente tenha que se esforçar. Em uma psicose ordinária, no entanto, pode-se captar o esforço singular do sujeito para fabricar-se ou sustentar a função de amarração de um sintoma para defender-se do real. E ele faz isso sozinho, com o sintoma, mas sem o pai.
A psicose ordinária redunda, então, em um localizador do sinthoma como tratamento do real.
Na neurose, esse real se desvela – e, na melhor das hipóteses, se comprova – no passe. Ou seja, um real como produto de uma análise. A análise é um processo que conduz a uma desamarração dos elementos através dos quais o real se encontra circunscrito: o sintoma, a fantasia, o pai… E, definitivamente, a linguagem. Uma análise é fazer a experiência de captar “o que falar quer dizer” de forma radical. Nesse sentido, um fim de análise tem algo de desencadeamento.
Seja como for, parece não haver sombra de dúvida de que a psicose ordinária não é só um revelador, um localizador do sinthoma como grampo dos nós sem o auxílio do pai. Ela também se mostra como um localizador do desejo do analista.
Por isso, necessitamos atualizar as referências ao desencadeamento para retirá-lo da clínica psiquiátrica em que Freud e Lacan o encontraram. Faz falta afinar suas manifestações e seus contornos, porque o valor do desencadeamento para a psicanálise é sua operatividade clínica em relação com o real.
O Congresso de Barcelona põe à prova um Che vuoi analítico na medida em que faz surgir os impasses dos próprios analistas na clínica que praticam.