
Imagem obtida no Instagram da autora
Marcela Antelo
EBP- AMP
O mal-estar de estar na cultura persevera através das mutações que afetam os laços sociais. O próprio das mutações é seu caráter irreversível. A industrialização, as guerras, os genocídios, os crimes ambientais, os êxodos, as débâcles financeiras, a tecnologização crescente do corpo e seu habitat, a preponderância do discurso da ciência, a biotecnologia em expansão, a sociedade de consumo, a corrupção das hierarquias governamentais, a violência nas cidades, o narcotráfico, os indignados, as praças ocupadas, a segregação crescente e a solidão irremediável montam um cenário do mundo paratodos.
O sujeito tornou-se parceiro sintomático do discurso da ciência. A satisfação oferecida pelos mercados da tecnociência se replica, assim como a falta de gozo se multiplica, como diz Miller: “levando-a a uma intensidade jamais vista, pondo em movimento as sociedades detidas, sem história, frias, e conduzindo à ebulição as sociedades cálidas” (1).
Deveríamos incluir sociedades quentes com breves historias pós-coloniais? O Brasil é habitado por uma sociedade cálida que está em ebulição. O agente das mutações nos modos de vida e de gozo é a pulsão de morte, aparelhada, que, como Miller lê no artigo citado, é retomada por Lacan de “O mal-estar na cultura”, de Freud, na sua Ética da psicanálise. Como consequência, nossa política é a do sintoma que cada um inventa para fazer objeção ao paratodos da degradação.
Não é tarefa simples dizer sobre o Brasil e menos sobre o que chamamos de América Latina. Acaso uma mesma pele cultural envolve os habitantes ao sul do equador? O lugar onde não existe pecado? Embaixadores do esculacho? A América Latina é uma bolha dentro da ficção global de nossos dias? Como traçar o mapa de uma América Latina que fala línguas diversas e dialetos múltiplos? E ainda, como bem dizer o que muda em nós, para nós. Há um nós ilusório na degradação?
O poeta e crítico Silviano Santiago, que sempre andava por trás das malhas das letras, disse em 1971 que a América Latina era um entre-lugar (2) (a space in-between). Entre Deus e o Diabo. A vanguarda neo-realista já comprovou que o povo não se apresenta nem se representa como Uno (Hollywood), nem como massa (Cinema soviético). Melhor falar de dispersão, fragmentação, entre-lugar.
Marcus André Vieira procurava nomear as propriedades brasileiras na hora da fundação da EBP e ensaiava encontrar uma pista na última parte do volume contemporâneo à fundação, A imagem rainha, onde se articulava precisamente a imagem com o mal-estar na cultura. Quinze anos depois, partindo do universal, do paratodos da saúde, não sem a loucura de cada um, encontra que “existem campos da cultura compatíveis com o que chamamos ‘sujeito’, algo que não compõe com o todo e se mantém, por definição, impreciso, um furo” (3).
Os três últimos encontros nacionais dão a régua e o compasso de como a EBP acompanha as mutações dos gostos, as sacudidas da cultura, as metamorfoses ambulantes, como modo de fazer existir o desejo do analista. Nascida Uma e múltipla ao mesmo tempo, a EBP não se reconhece numa única voz. Por outro lado, “Há Um no múltiplo a condição de não buscá-lo a qualquer preço” (4).
Numerosas vozes afinaram ao redor dos temas “Mulheres de hoje: figuras do feminino no discurso analítico”, “Trauma nos corpos, violências nas cidades”, “Adolescência, idade do desejo”. Nesse último encontro, para extrair um exemplo, aprendemos que se o tema acendeu uma chama foi porque:
Quando falamos da adolescência, estamos tratando dos nossos próprios embaraços com a época atual e nada melhor do que fazer dos impasses e saídas dos adolescentes pontos de insabido a partir dos quais possamos aprender. Aprender com as indagações deles, que nos surpreendem, nós, atrapalhados com tantas mutações produzidas pelos efeitos do discurso da ciência, para as quais a experiência não nos serve.(5)
Atrapalhados e em ebulição
Quando festejávamos a ascensão do $ ao lugar de agente do discurso, equivocávamo-nos, disse Miller. O início do século XXI assiste a um ‘retorno sensacional do discurso do amo/mestre’ (6), que volta qual zumbi. O Outro que não existia para sempre nunca mais, volta e predica.
Por um lado, retorno do amo sim, mas por outro, há lugares nessa terra em transe onde o amo nunca afundou, talvez de tão seca que o sol a torne. O Outro no sul do Equador é “extremamente rígido e ao mesmo tempo não existe” (7).
Acrescentemos também que quando falamos de cultura, como ensinaram Raymond Queneau e o cineasta baiano Edgard Navarro, devemos focar com esmero na primeira sílaba da palavra. Procurando o que não compõe com o todo, medimos a nossa temperatura em alguns dos horizontes que se apresentam.
O horizonte urbano: o empuxo higienista e sanitarista faz a festa nas nossas cidades. O culto à performance corporal, ao consumo de anabolizantes, à proliferação de personal trainers, às intervenções no corpo em busca da foraclusão da velhice, povoam nossas ruas de academias e farmácias. Carros blindados, vidros escuros, cidade-motor onde quem anda a pé não é cidadão. Ninguém é cidadão, canta Caetano Veloso. As cifras gritam: Morte!
O horizonte político: Uma artista brasileira que fez da interpretação ato poético disse décadas atrás: “Somos governados por gorilas, que me desculpem os gorilas verdadeiros”. Elis Regina não vomitou com o país a recente noite de desmascaramento da infâmia da classe política que ocupa a Câmara de Deputados e que envergonhou o país. Não que ignorássemos a fatura dos que ocupam as cadeiras, mas até essa noite estavam protegidos pelo manto da burocracia de um saber/poder coletivo, sem Um. A voz de cada um caiu do Outro e os arrastou, um por um, interminavelmente entrada a madrugada, e não foram só os pés que se revelaram de barro. Os ‘memes’ foram as figurações irônicas que se espalharam de pessoa a pessoa, com sua potência viral, interpretando o acontecimento. O pai do nome ‘meme’ foi Richard Dawkins no seu livro O gen egoísta, de 1976. Replicam-se em contato com humanos e encarnam uma das formas mais lúcidas de resistência ao disparate. Precisam do consentimento do um para funcionar.
O horizonte erótico: O Outro não está olhando porque não existe. O Outro olha e estupra. Mais uma vez as cifras gritam: Morte! A imagem do corpo próprio reina no Brasil: se em 1995 reinava, hoje ela governa. A função dos dispositivos digitais de encontros é altamente sofisticada num dos países mais blogueiros do mundo, onde tudo se dá a ver. Candidatos nus, armados, bombados, nas vitrines. Contratos de swingers à luz do sol. Promoção de relações abertas, não sem cada um conhecer as senhas dos dispositivos do outro. Deterioração do próprio dispositivo casal, culto à multiplicidade de experiências sexuais e a promoção do Um Narciso. O prognóstico de Romildo do Rêgo Barros sobre a busca do Um em unidades cada vez mais pequenas (8) encontrou nesse fim de ano um testemunho midiático eloquente. O hit desse último Natal, reportado pelo jornal televisivo de rede nacional, foi o presente dado a si mesmo, verdadeira apoteose da loucura do eu. Cada um seu próprio Papai Noel, que, por outro lado, se revela um stripper.
O horizonte religioso: o triunfo da religião que é paratodos assume forma viral no Brasil: Dieu Born again (Jam dixit). Religiões mainstream e das outras entranhadas na estrutura íntima da pirâmide do poder se oferecem como alternativa higiênica, transparente, purificadora. Elas permeiam os cotidianos e se enroscam nas elites políticas marcadas pelo excesso. A sequela das devastações sobre os corpos e as ideias ocupará nossas agendas pelas próximas décadas.
Não há pai para contar que a coisa arde. Há somente alguns analistas.