
Difusão XIV Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise. Seção Pernambuco
Maria Eliane Neves Baptista – EBP – AMP
O trauma é, antes de tudo, um acontecimento imprevisto, insensato, que se instala a partir dos efeitos de sintoma e de gozo engendrados no corpo.
Freud trata da natureza do trauma em Estudos sobre a histeria e, posteriormente, em Introdução ao simpósio sobre as neuroses de guerra.
Descobriu Freud, que a histérica sofria das reminiscências de um trauma de sedução que, para ele, se constitui como uma defesa diante da lembrança do encontro com o sexual.
Escreveu Philippe La Sagna:
Na perspectiva freudiana, o acontecimento é contingente, e é a sexualidade enquanto tal, que é verdadeiramente traumática. O trauma aparece como o enodamento de dois reais: o acontecimento traumático de um lado e, de outro, a incidência da sexualidade no fantasma. Isso reforça o mal-entendido do trauma!
O sentimento de estranheza, a ausência de significação, a angústia, os pesadelos que dele decorrem, levam o sujeito, a perder a noção do que acontece na realidade.
No caso Emma (1895[1950]), o trauma de sedução é trabalhado por Freud em Projeto para uma psicologia científica, onde ilustra a noção de après-coup, e em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Emma se acha dominada pela ideia compulsiva de não poder entrar sozinha nas lojas e associa o fato à lembrança de um acontecimento, quando tinha 12 anos. Ao entrar em uma loja, vê dois vendedores rindo juntos e foge assustada. Recorda que eles riam de suas roupas e ela sentiu atração sexual por um deles.
Esteve Emma em duas ocasiões em uma confeitaria para comprar doces e, na primeira vez, o proprietário rindo, agarrou-lhe as partes genitais por cima da roupa. O encontro com o desejo sexual do Outro, diante do qual a criança se coloca, constitui para Freud a cena da sedução.
Mas, é somente no segundo tempo, quando ela estava com 12 anos de idade, que o acontecimento é interpretado como sexual e adquire valor de trauma. A dimensão enigmática desse encontro é o que produz um efeito traumático posterior que não se define pela cena de sedução, mas por suas consequências.
Se na teoria freudiana, o encontro traumático é fonte de questionamentos referentes à sedução, encontra-se em Miller, que Lacan considera o verdadeiro núcleo traumático, a relação de lalangue com o corpo.
Lacan introduz o termo lalangue separado da estrutura da linguagem. Enquanto pertencente à ordem singular, lalangue não tem significação e, na teoria lacaniana, é considerada como uma tentativa de veicular o real impossível de ser simbolizado. O impacto causado pelas palavras escutadas, incompreensíveis e inarticuláveis atinge o corpo e indica a dimensão de buraco, próprio ao traumatismo.
É lalangue, incidindo no corpo, que tem valor de trauma. Assim, a segunda cena do caso Emma – o riso do vendedor – faz ressoar o real de lalangue pela via do enigma, do que não tem significação; ou seja, não é o acontecimento em si, mas a perspectiva de um gozo impossível de simbolizar.
Recentemente, recebi em meu consultório uma criança de 7 anos chamada Lucas, cujo pai desapareceu de casa quando ele estava com 6 meses de idade e nunca mais voltou. Sua mãe procura atendimento devido às dificuldades apresentadas por ele em permanecer no colégio e em se relacionar com crianças de sua idade. Acrescenta que Lucas procura sempre crianças mais novas, com quem partilha jogos que, segundo ela, são bastante infantis para sua idade.
Na entrevista, a mãe de Lucas diz que, pouco tempo depois de ter sido abandonada pelo marido, enamorou-se de uma colega de trabalho, com quem estabelece uma relação homoafetiva e com quem Lucas manteve um bom relacionamento.
Conta também que em uma ocasião, quando voltava de uma festa de aniversário infantil, onde as crianças estavam acompanhadas pelo pai e pela mãe, Lucas, que até então não havia perguntado nada a respeito do pai, indagou sobre ele. “Onde está meu pai?” A mãe respondeu, dizendo-lhe o que ocorrera. “Seu pai viajou e nunca mais voltou. Agora você tem duas mães.”
Na entrevista com Lucas, ele diz que não gosta de ficar no colégio porque, mesmo sabendo que a mãe não irá deixá-lo, tem sempre medo de que ela não vá buscá-lo no término da aula. Passa na cabeça que a mãe vai esquecê-lo e diz: “Tenho medo do meu pensamento”. O medo de Lucas, sinal da presença do real, provoca-lhe angústia.
Numa sessão em que entrou acompanhado pela mãe, desenhou uma casa. Quando foi indagado sobre quem morava na casa, disse: “Nessa casa não tem pai, só mãe”.
As indagações sobre as novas formas de família com casais do mesmo sexo refletem, muito mais, a preocupação do casal homoafetivo, do que a das próprias crianças. A clínica psicanalítica tem-se confrontado com essas mudanças na constituição familiar e constatado, cada vez mais, que a formação do casal, nem sempre tem a conotação heterosssexual.
A realidade familiar com a qual Lucas convive, obrigatoriamente, não irá se constituir modelo de identificação. O fato de ter duas mães não é determinante para que ele escolha ser menino ou menina. Ele elegeu como substituto paterno, a companheira da mãe, que lhe permite dar sentido ao que não tinha anteriormente, demonstrando que as funções homem e mulher, necessariamente, não correspondem às de pai e mãe.
O que se constitui questão para Lucas é a marca do desaparecimento do pai, o cenário familiar do abandono. Lucas sofre pelo que é do real, do encontro com o impossível de suportar se fez enigma.
Confrontado com o vazio, diante do não saber, ele vive o quê de mais doloroso pode atingir a criança pela ausência de palavras do Outro, o sentimento de rejeição que o atingiu em seu ser.
Miller diz o seguinte: “no primeiro momento, há um fato que não se integra, um fato sem sentido e que, apenas num segundo momento, o fato do traumatismo poderá ter sentido”: “dans un premier moment, il y a un fait que’on n’intègre pas, un fait sans sens, et que dans un second temps seulement, le fait du traumatisme pourra avoir ce sens”.
O pensamento de Lacan a respeito do troumatisme é que: “Inventamos um truque para preencher o buraco no real, ali onde não há relação sexual, Um se inventa”.
Lucas tem um interesse especial pela família da analista. Pergunta quantos filhos tem, qual a idade deles e onde estudam. Na relação transferencial, ainda tem necessidade de inventar saídas diante da opacidade do trauma que a vida lhe impôs.