Bruno Tarpani – Eduardo Benedicto – EBP/AMP
Este texto foi produzido no âmbito do Cinecult/USP, um espaço de interlocução com a sétima arte a partir da exibição de filmes, debates com o púbico e produção de trabalhos acerca das relações entre cinema e psicanálise. A atividade já esteve associada ao Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade (Clin-a), tendo sua origem na Prefeitura do Campus da USP de Ribeirão Preto, sendo Eduardo Benedicto (AP e membro da EBP/AMP) um de seus coordenadores e Bruno Tarpani (documentarista, psicólogo e psicanalista praticante) um dos debatedores da mesma. O Cinecult se insere na Rede de Cinema e Psicanálise (RCP) da FAPOL, sob coordenação atual de Cleyton Andrade (EBP/AMP).
Desde seu surgimento, o cinema tornou-se uma expressão de grande interesse para o pensamento moderno. Os ensaios de Deleuze, Bergson, Walter Benjamin, e até mesmo de nosso contemporâneo Zizek (apenas para ficarmos no campo da Filosofia), são exemplos de como a linguagem audiovisual não só é objeto de análise, como também inspira conceitos e reflexões. Porém, não somente os filmes podem nos oferecer material de pensamento, mas também o processo mesmo de sua produção – tema que aqui nos interessa tomando como enquadre o gênero Documentário. Isso porque, desde sua inauguração com o filme Nanook, o esquimó (1922), o Documentário se estabelece como um campo de tensões, ainda persistentes, entre os registros da verdade e da ficção. Inúmeros foram os esforços de traçar o litoral definitivo que separasse a atividade ficcional da documental, o que, frequentemente, nos levou a resultados parciais, insatisfatórios, ou, por vezes, inócuos.
De outro lado, no cerne da descoberta psicanalítica, nos deparamos com a fantasia, conceito que enlaça a verdade e a ficção, instaurando o mito de cada indivíduo condicionado à ordem significante; daí que Lacan afirme que a verdade se estrutura como ficção, reincidindo sobre o que Freud propõe como primazia da realidade psíquica para os seres falantes. Assim, a verdade sobre a qual o analista se debruça é de um tipo muito específico, que habita “(…) um ponto de sonegação de nosso sujeito – uma verdade particular, (…) mesmo que seja universal que essa particularidade se encontre em cada um dos seres humanos” (LACAN, 1997).
Não havendo, portanto, uma distinção fundamental entre a ficção e os efeitos de verdade em um sujeito, Lacan procurará abordar esse tema sob uma perspectiva ética, estatuto ao qual alçará o próprio Inconsciente – caminho semelhante que é tomado por alguns documentaristas no manejo entre realidade e ficção em suas obras. Cabe-nos então perguntar se esse posicionamento pode tecer analogias com a práxis analítica e lançar luz para uma postura subjetiva frente à marcha de um despertar traumático em nosso contemporâneo, abalado por contingências dramáticas que pedem por revisões estruturais no plano social, econômico e ecológico para um próximo sonho de civilização.
O escritor e diretor Jean Louis Comolli (2008) descreve um momento mágico que ocorre de tempos em tempos a um cineasta: algo no mundo o instiga, captura, vibra – uma profusão de cenas, sons, ângulos, movimentos e cortes desfilam diante de si, e as pupilas se afrouxam como se quisessem olhar para um horizonte ausente. Um “tipo de consciência difusa, que circula, de que há filme no ar”. Para ser mais preciso: “desejo de filme”. Comolli nos lembra que, antes de um filme engrenar num processo necessariamente coletivo e estratificado, ele nasce, primeiro, do desejo de alguém. Um filme é sonhado por alguém antes de existir.
Aqui permitimo-nos também sonhar com o que teria incendiado a curiosidade de alguns documentaristas pelas suas histórias. Quais personagens, lugares e lembranças lhes fustigaram o desejo de saber mais, de mostrar ao Outro sua fantasia sobre as coisas. O que queria João Moreira Salles ao contar a vida de seu mordomo (Santiago, 2007) e, anos depois, confessar seus preconceitos de cineasta àquela época? Ou o que movia Coutinho em seu esforço por fazer falar uma singular universalidade e solitude dos moradores de um prédio de classe média carioca (Edifício Master, 2002)? Certamente podemos ter acesso a algo do que pretendiam tais diretores por entrevistas ou escritos; entretanto, também sabemos que partes de seus desejos permaneceram veladas até que, pela via significante e do ato, puderam mostrar-se apenas em imagens e sons.
Assim, quando o cineasta lança algo de sua angústia ao Outro para um ciframento da invasão de gozo que o incide, apostamos que está a fazer de sua obra uma forma de sonhar. Nas palavras de Lacan sobre o fazer artístico: trata-se de dar um contorno ao vazio e colocar-se no mundo a partir da obra. Sonhar torna-se uma possibilidade de tratamento do gozo no corpo a partir de seu ciframento (MARON, 2020), o que nos recorda que tanto o sonho quanto a fantasia estão a serviço de um mesmo adormecimento que escamoteia a angústia que pulsa do Real – podemos, portanto, dormir em vigília. Mas na construção audiovisual é possível fazer outro uso do sonhar: no umbigo de seu tão sonhado filme o documentarista precisa fazer escolhas que podem emprestar à sua obra a dimensão de um despertar.
Ao iniciar a aventura de ir a campo, o artista defronta-se com inúmeros empecilhos: atrasos, interrupções, perdas, relatos imprecisos, ruídos… – tudo isso ocorre à produção de um documentário pela sua própria condição de abertura ao imprevisto do mundo. Serão esses percalços que farão furo no discurso sonhado pelo cineasta e que o acompanharão na pesquisa, filmagem e montagem. Furo que involuntariamente se faz presente na obra imagética – como no punctum de Barthes (1984) -, seja no corte entre os quadros, na zona ausente do que não foi enquadrado ou, que não se esqueça, do enorme tempo em que, por enxergarmos apenas a ilusão do movimento em 24 frames por segundo, estamos durante muitos minutos de um filme assistindo à não-imagem; estamos, literalmente, no escuro – dormindo de olhos abertos. Porém, não falamos apenas desse Real indomesticável e sorrateiro, mas também daquele que está atrás das lentes, nos bastidores, atravessando os eventos do filme e o próprio corpo do cineasta, o qual pode por ele ser acolhido no corte final de sua obra, evidenciando, como acentua Jean Rouch, não a verdade no cinema, mas a verdade do cinema.
Comolli (2008), ao falar com que real o Documentário lida, posiciona-se ao dizer que não se trata de capturar uma objetividade, mas de fazer com que o movimento do mundo esteja na confecção do filme, frustrando-o ao tentar estruturar algo de uno: faz parte do caminho de sua produção ser tocado pelo Real que não cessa de não se roteirizar e, a partir disso, posicionar-se eticamente. O documentarista é sempre colocado na posição daquele que precisa escolher entre construir uma falácia de coerência e consistência imaginárias, ou incluir no filme algo de um despertar de seu sonho que possa evidenciar a dimensão de semblant na edição de sua verdade, abrindo espaço a uma cena que possa atingir o espectador como um acontecimento de corpo. Um despertar por vezes evitado – pela via do sonho, da fantasia e, por que não dizer, do filme – pelo confronto com uma realidade que está na ruptura entre percepção e consciência, esta Outra cena que desperta o sujeito (MOURA, 2000); um Real que está disjunto ao semblante do saber, marcando a existência do ser no mundo enquanto satisfação, gozo/jaculação (MILLER, 2009).
Em última instância, o consentimento do cineasta e do espectador que assiste e insiste pode causar momentos de corte na fantasia e no sonhar, já que a impossibilidade de significantizar toda a experiência nos confronta com as contingências pelas quais precisamos nos responsabilizar em ato e palavra – que, mesmo insuficientes, podem acomodar um savoir faire. A possibilidade de o ser falante permanecer na condição de um despertar absoluto é impossível – já que ele mesmo é efeito de um significante a outro -, colocando-o sempre numa existência entre-sonhos, na qual, o que se pode almejar, ao menos, é que algo do storyboard de sua fantasia possa vacilar e ter uma nova configuração, orientando-se por uma vivificação do gozo. O cineasta pode sonhar em seu filme acolhendo algo dessa realidade faltosa – a parte maldita (COMOLLI, 2008) -, essa brasa de realidade que nos indaga: “não vês que estou queimando?”.
Miller destaca a modificação da verdade no último ensino de Lacan, no qual o importante da narração, da histoeria, é escrevê-la e inscrevê-la incluindo os furos, tropeços e tantos signos de Outra verdade. “Vagabundeio pelo que considerais como o menos verdadeiro em essência” , dirá Lacan em seus Escritos (1965 – 1966), emprestando sua letra à verdade. Uma verdade que se vislumbra em seus dejetos (MILLER, 2010), com os quais a psicanálise aposta que algo do vivo, do despertar, possa entrar em cena.
A esse contemporâneo que nos solavanca, desorganizando as armações imaginárias e significantes, a prática do documentarista nos mostra esse lugar entre-sonhos que estruturalmente ocupamos, no qual é possível contemplar algo do Real que nos desperta de um sonho de civilização que há muito mostra sintomas de esgotamento. O cinema/documentário, no que tange à sua produção e efeitos nos seres falantes, incluindo aí os próprios diretores, nos empresta então uma oportunidade de despertar ao nos colocar em conexão com imagens e sons que produzem “verdadeiros” acontecimentos de corpo, mais além de enredos que podem nos fazer sonhar numa ilusão sem corte.