
Amanda Dupont. “Marcattisimo”. Acrílico
Clara Holguin
“Por isso mesmo, as outras duas paixões são as que se chamam amor – que nada tem a ver, com o elucubrado pela filosofia, com o saber – e o ódio, que é justo o que mais se aproxima do ser que chamo ex-sistir. Nada concentra mais ódio que esse dizer onde se situa a ex-sistência” (1).
Esta citação que extraio do Seminário Mais, ainda, nos coloca na via de indagar, a lógica da paixão no ódio.
Lacan propõe as paixões como a via para nos aproximar dessa zona da experiência subjetiva, que é também a experiência analítica, que chamamos real “o que mais se aproxima do ser, que chamo ex-sistir”.
As paixões nos introduzem no campo dos afetos, mas não como se costuma dizer, porque estes nos dariam um acesso direto e autêntico à verdade, mas sim porque os afetos se definem como o que “prevalece do inconsciente”, efeito da palavra sobre o corpo, que nos permite pensar o inconsciente como um discurso do corpo.
A paixão fundamental do amor-ódio, que Lacan nomeou com o termo L´hainamoration, odioamoramiento, introduz via equivoco homofônico, a condensação em jogo. O termo hain (ódio) está presente em amoration (enamoramento, estar enamorado). O amor não é sem ódio. A equivocidade do “não é sem” introduz um sentido mais além da dimensão imaginária onde a ambivalência se instala, para abordar a paixão no registro do real: amo em ti, algo mais que tu, por isso te mutilo.
A paixão amor-ódio, como nos propõe Freud em seu texto A negação, está na origem da constituição do falasser. A realidade depende e se constitui a partir do gozo que é recusado. Em uma mesma operação ou movimento se produz a afirmação (inclusão) e recusa (expulsão), aceitação do significante, e a perda ou recusa do objeto (2). Topologia de “inclusão-exclusão”, que responde como demonstra Freud a oposição dos grupos pulsionais, pulsão de vida-pulsão de morte, amor-tânatos (3). A entrada no universo simbólico supõe a perda originária e radical do objeto. O objeto é recusado no tempo mítico em que o vivente é imerso no banho de linguagem, ficando fora do simbólico, ou melhor, em uma relação de exterioridade íntima do simbólico, êxtimo.
O objeto é ao mesmo tempo o mais íntimo e o mais estranho para o sujeito. O êxtimo, da conta disso que fica fora, mas em relação com. Ainda não existe, quer dizer, não está subjetivado, ex-siste. O ex-sistir escreve isso, o ex, fora de, fora de si mesmo na linguagem, fora do seu gozo próprio. O problema da extimidade é que o Outro é Outro de si mesmo. Odeia o próprio gozo (4). Não temos uma boa relação com o nosso gozo, lembra Eric Laurent (5), odiar seu gozo, o próprio, parece ser a má notícia que a psicanálise anuncia a humanidade, como se pode constatar com os fenômenos de racismo e segregação.
A ex-sistência manifesta a maneira como a linguagem marca o ser falante desde o princípio. Quando se fala, dirá Lacan, se produz a divisão sem tratamento do gozo e do semblante. “Brutalidade opaca da vida” (6) que da conta do traumatismo que nos constitui.
E como disse Lacan: “nada concentra mais ódio que esse dizer onde se situa a ex-sistência,” (7) Que implica dizer onde se situa a ex-sistência?
Para responder a esta pergunta, é necessário esclarecer o uso do “existe”. Freud o localizou e designou a partir da noção de fixação e por muito tempo Lacan não conciliou este termo com o significante, por considerar sua relação com a dialética e o que engana.
Será só a partir da busca de um significante que se aproxime do que permanece estável, e passando pelo afeto da angústia, enquanto afeto que não engana que se encontra o significante Um que tem como correlato a inscrição do gozo opaco ao sentido, enquanto referência da ordem do real.
Ex-sistir não é o mesmo que ser. Tal como assinala Jacques-Alain Miller em O Ser e o Um, a divisão entre o ser e o existir introduz o “Há Um” que corresponde ao Outro que não existe. Este significante Um, que vem na qualidade de real, é Um dizer, letra (escritura) a partir do qual se organiza o mundo do falasser.
O ódio tem como suporte o Um. Ali não há nem suposição, nem comunicação. O Outro é intolerável, não goza como eu. Nada concentra mais ódio que um dizer, essa marca singular de gozar, que é a diferença absoluta, por isso se odeia.
A lógica exposta aqui, evidentemente não da conta das razões pelo que se odeia, porém, permite uma abordagem mais “digna” da paixão, sem pretender dominá-la, ou desprender-se dela, mas sim melhor bordeá-la, “lê-la”, já que se trata de escritura, para tomar a boa distância dessa maldade própria do humano, o “inumano”, que é por certo mais singular. Esta volta é o que supõe alcançar a posição do analista, incauto do real.
Tradução Jussara Jovita