Gustavo Cetlin – Participante Seção MG/EBP
O documentário brasileiro “Laerte-se” relata a transição do famoso cartunista brasileiro de homem cis para mulher trans aos 60 anos de idade desencadeada, sobretudo, após a perda de um filho. Entrevistada pela jornalista Eliane Brum, Laerte – que manteve o nome próprio masculino depois de descobrir que nomeava também uma figura histórica feminina – diz de uma experiência que precisava acontecer no corpo para escrever algo na vida. Junto com sua transformação real, um dos principais personagens que desenha também se transveste e se torna mulher. Corpo e desenho ganham forma simultaneamente.
O filme inicia com a negociação para o a feitura do filme com trocas de mensagens entre a jornalista e Laerte, que tenta adiar mais uma vez o projeto por ansiedade e reticência quanto a ser entrevistada, mas recebe como resposta uma interpelação: “acho que é importante manter o encontro e acho importante que ele não se torne pesado para nós. Às vezes são só desacontecimentos, rotinas, delicadezas… e também algum desconforto…”. Laerte não contesta: “é meio que nem terapia, ou análise. Vamos fazer aqui em casa mesmo. E ver no que dá”. A jornalista, assim, não privilegia o dizer que faz sentido, não lhe faz cobranças de respostas valorosas para seu projeto. Antes, insiste no encontro e que este não seja pesado para nenhuma delas. Talvez, para a sessão analítica possamos dizer que a sessão não seja tão pensada, mas escrita. Um caso talvez ajude a ilustrar a função dessa presença e seus desdobramentos, especialmente quando o que está em questão é a escritura de um corpo.
C., 24 anos, chega ao consultório encaminhada pelo psiquiatra que a acompanha desde seu surto no final da adolescência após ter assumido aos pais sua homossexualidade. Durante a crise imaginava que era pedófila, que nutria desejos por meninas pequenas e, por isso, não deveria viver. A medicação fez cessar o conteúdo do pensamento, embora este se mantivesse na sua forma impositiva. Quando chega ao consultório reclama, sobretudo, de sua dificuldade de socialização, sempre marcada por tentativas frustradas de interpretar os códigos de pertencimento e se adaptar a eles. “Não consigo falar e colocar minhas opiniões. Sentia que desaparecia, que ninguém ia concordar comigo”. O esforço no social a esgotava e reafirmava sua inconsistência subjetiva no campo do Outro.
Gostava de meninas que chamava padrão, “patyzinhas”. Movia-se no campo social por estereótipos – imagens que pudesse servir de molde, o que rapidamente confirmava sua inadequação. Ademais, cursava a terceira universidade, perturbada pela incerteza de qual decisão: buscava uma resposta. O tratamento anterior, no afã terapêutico, a estimulava a se socializar e, assim, jogava-a na trama social que exatamente a frustrava e desafiava.
Suas primeiras sessões foram marcadas por esse senso de urgência de pertencimento e incertezas profissionais, mas pequenos traços de singularidade chamavam atenção: desenhava frequentemente, copiando outra imagem e muitas vezes isso a acalmava, ainda que com limites. “Tem hora que desenhar me consome muito”. Não suporta desenhar com defeitos, gasta horas e dias na mesma imagem, tentando fazê-la sem falhas. O analista provoca que suporte alguma incompletude.
Começa a dizer mais de seu fazer cotidiano, o tratamento continuamente esvaziando a dimensão de uma resposta contundente diante dos imperativos. Eventualmente, começam a surgir relatos na sua história de ligação com o masculino, como na infância pedia a mãe para lhe comprar apenas roupas do setor de meninos. A mãe não consente. Aponto que há ali um interesse próprio, anterior a esses deveres. Na sessão seguinte vem de cabelo cortado, curto. Um fazer com o corpo que começa a escrever uma forma de se apresentar ao outro pela via do que não era esperado. Ao invés de dizer das meninas que gostaria de conhecer, fala da imagem que quer construir de si: lê livros feministas, problematiza o lugar da mulher na relação com os homens, faz desenhos abstratos, “da própria cabeça”; começa a aparecer um fazer que prescinde do pensar.
Recentemente, inaugura o questionamento da transexualidade e anuncia: quero ser um cara. Digo apenas que não seja um cara qualquer. Veste as roupas que a mãe lhe negara e se aventura na mudança de nome. Chamar-se no masculino instaura uma regulação inexistente antes no campo do afeto e da experiência de si. “Sou mais eu”.
Laerte, no filme, diz de uma experiência inaugural, um júbilo, quando na sua transição tira todos os pelos da perna e, ao se deparar com a pele lisa, surpreende-se: inicia ali a construção de si. Assim como no corte de cabelo de C., a retirada de algo escreve um contorno do corpo.
Na última lição de seu seminário sobre o Sinthoma, Lacan anuncia: “Uma escrita é, portanto, um fazer que dá suporte ao pensamento” [1]. É uma lição dedicada à escrita do ego em Joyce. Não é uma escrita que visa à comunicação; antes a obra de Joyce opera na colocação em jogo do enigma e não do sentido: é antes um fazer com a língua que operar com a linguagem. A privilegiar o enigma, Lacan privilegia a enunciação, visto que “a enunciação é o enigma elevado à potência de escrita”[2]. É nessa direção que Miller (2012)[3] esclarece que é preciso operar com o equívoco em oposição ao unívoco do sentido que é compartilhado.
O analista sustenta, nesse processo, uma operação que trabalha o enigma não entendido como “o que isso quer dizer?”, mas sim “como isso pode ser dito”. Laerte e C. reivindicam a possibilidade de se dar um nome ao corpo para além do universal do que significa ser homem ou mulher. A operação analítica promove uma nomeação do gozo, produzindo o S1 sozinho. Contudo, este só pode ganhar a potência de escritura na medida em que é promovido à uma enunciação a ser captada pelo discurso analítico, captação feita pela presença do analista em sua função de letra.