Gabriel Goycolea – Aderente do Centro de Investigación y Estudios Clínicos (CIEC). Córdoba
O que é o autismo? Esta pergunta despertou as mais complexas discussões, teorias e protocolos de abordagem. O autismo altera, rompe a homeostase terapêutica dos comités de especialistas onde os fundamentos psicanalíticos ou as verdades extraídas de manuais psicodiagnósticos parecem construir edifícios de conclusões para validar a si mesmos. Entretanto, na história de seu nome próprio e sua inclusão nas classificações, revelam-se fissuras.
As fissuras nas tessituras universais respondem a um processo normal de mudança de paradigmas e mutações na linguagem de prescrições comportamentais humanas. Modificações que se podem compreender no marco de associações profissionais que dirimem os vereditos sobre a normalidade psicológica e a órbita da suspeita diagnóstica de acordo com parâmetros classificatórios. Em outras palavras, uma linguagem da boa forma comportamental de alcance universal, anônimo e com múltiplos destinatários.
Indefectivelmente, além da complexidade teórica e procedimental, em cada diagnóstico há uma dimensão de consentimento ou não à linguagem das classificações e às estruturas clínicas definidas por comitês de especialistas ou uma teoria em particular. Contrariamente ao que alguns creem, a língua das classificações não se encontra matematizada, não é uma verdade conhecida, mas sim uma construção, o resultado de consensos, com incalculáveis efeitos de verdade nas distintas sociedades onde têm alcance. Ao referir-se a esse tema, Miller (2011) adota uma tessitura que consiste em perguntar-se pelo furo no universal das classificações na medida em que classes ou sistemas de classificação são mortais e correspondem a construções históricas. Sabemos que nossas classificações têm algo relativo, artificial, artificioso, que são somente semblante; isto é, não se fundamentam nem na natureza, nem na estrutura, nem no Real.[1]
A artificialidade das classificações é interdependente do fluxo incessante de teorizações sobre o psíquico, a conduta ou a psicopatologia, como também, dos predicados que sustentam axiomas em exemplares de classe. Não obstante, a diferença entre um sistema de classificação como o DSM V e a teoria psicanalítica se encontra determinada pela permeabilidade no avesso do que não encaixa na teoria e procedimentos universais.
O avesso dos predicados de classe não universais desvela outra materialidade, onde a não correspondência entre signos patológicos e classificações, se vê questionada em sua natureza não conclusiva. Uma essência, uma substância que não está dada por si na natureza humana, mas está constituída de práticas linguísticas. Os signos patológicos das categorias consensuais se dispõem ao modo de diques seguros frente o avesso do que não funciona nas classificações. Nesta contenda do dialeto classificatório, o relevante são as práticas linguísticas, o que aporta veracidade: não necessariamente os dados, sempre incompletos. Como pontua Miller (2011), estas classes ou classificações não tem uma sustentação na natureza, ao contrário, trata-se de artifícios fundamentados nas mesmas práticas linguísticas de onde emergem.
Neste ponto, a complexidade da análise conduz a um debate sempre vigente entre singularidade e universalidade, entre o nominalismo que aspira indivíduos livre de nomes universais ou o pragmatismo de classificações psicopatológicas que definem o espírito pós-moderno, onde a nosografia evolui em função da invenção dos meios de ação[2]. Nesta disposição dos sistemas classificatórios, tudo o que escapa aos predicados linguísticos da classe automaticamente é assinalado como diacronia e reabsorvido na ordem operatória das novas classificações, sob critérios de semelhança, co-morbidade ou sintomas associados. Os estândares científicos de semelhança são artifícios exitosos para o contínuo de um espectro classificatório, aquele que dá conta de indivíduos indivisíveis na congregação de sintomas patológicos e suas correspondências com predicados nosográficos. Entretanto, os manuais psicodiagnósticos, os sistemas classificatórios e as teorias psicológicas não abarcam a totalidade do sujeito.
A impossível representação é o limite das classes, dos predicatos e os atores terapêuticos e analíticos; constituem a borda onde o indivíduo ou o sujeito mediante seu sintoma se nomeia – a si mesmo – como único entre a generalidade de sua espécie. Como observa Coccoz (2012), os sintomas são considerados como signos da subjetividade, esta entendida como posição existencial, que sempre adota formas particulares[3]. Neste vazio de significação sobre o indivíduo e o sujeito da classe, onde emerge a singularidade nominalista além da pragmática, se manifestam as diferenças centrais que abonam boa parte dos debates entre o DSM V e a Psicanálise. Neste ponto, os sistemas classificatórios põem em manifesto seu limite ao não conceber o sintoma – presente no transtorno – como um aspecto que compõe a identidade do sujeito. Uma diferença essencial com a Psicanálise que inclui a dimensão da falta em toda construção de classes e o avesso não universal do predicado nas classificações. Neste sentido, dar lugar ao avesso não universal e julgar a adequação ou não de um indivíduo aos sistemas classificatórios implica não reduzir o sujeito na linguagem totalizante dos transtornos, determinando, caso a caso, a adequação ou não à regra; não desconhecendo a emergência de um sujeito na singularidade de seu consentimento à linguagem.