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O falasser político na contramão da biopolítica


lacan21 - 24 de junio de 2022 - 0 comments

Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP)

Lacan, no Seminário 19[1], já nos advertia de que nosso futuro não seria cor-de-rosa e que o racismo, que se enraíza no corpo, ainda não havia mostrado suas últimas consequências. Éric Laurent nos apresenta o falasser político[2] como portando, em si mesmo, a capacidade de fazer frente à segregação e à biopolítica, tão marcantes em nossos tempos. Como isso se dá?

As linhas que seguem são a tentativa de desdobramento desta questão e decorrem das discussões, ainda em andamento, no cartel “Ciência, política e civilização”[3].

Na Conversação com a Escola espanhola do Campo Freudiano, realizada no dia 02 de maio de 2021 para a ocasião do lançamento do livro “Polêmica política”, Anna Aromí cita Lacan e pergunta à Jacques-Alain Miller por que temos tanta dificuldade em produzir no campo político “uma interpretação que produza efeitos, ou seja, que faça ondas”. Miller diz, em uma primeira resposta, “que é necessário correr riscos”, e que “sem isso, não se produzem ondas[4]”.

Esta passagem me remete diretamente ao tom vibrante presente desde as primeiras reuniões do referido cartel, quando os integrantes se perguntam, cada um à sua maneira, como a psicanálise e o Ensino de Lacan podem ler, interpretar e contribuir com a diminuição da barbárie no campo político e na civilização atuais.

Ainda na Conversação de 02 de maio de 2021, Miller enfatiza que havia, “por parte de Lacan, um desejo de analisar a Escola como um fenômeno coletivo dentro de uma sociedade”, e que o momento atual convoca os analistas para serem “analistas da experiência da civilização, para além da Escola, que eles sejam analistas dos fenômenos sociais[5]”.

Faço uma retomada do que, no Ensino de Lacan, provocou em mim ondas e me fisgou transferencialmente. Destacam-se as proposições lógicas impactantes que apontam para a inexistência, o “não há”: “não há diálogo”, “não há relação sexual”, “não há harmonia entre os sexos”, “A mulher não existe”, “o Outro não existe”, “não há como amar ao próximo como a si mesmo”. Todos estes aforismos deixam sua marca subversiva, na contramão do discurso do mestre, porque são modos de apontar para o real. Podemos dizer que estas proposições lacanianas reverberam, possuindo efeitos também em outros discursos. Mas é importante lembrar a afirmação fundamental que Lacan nos apresenta no Seminário 19: “Há Um”[6]. Como inserir, no campo da política, tanto a perspectiva do não-todo, por um lado, quanto a do gozo – decorrente da primeira, por outro?

No Seminário 7, Lacan descreve o intelectual de esquerda como “um fool, um inocente, um parvo[7]” e contrapõe ao intelectual de direita, a quem aponta como “canalha[8]”. A este respeito, Manuel Fernández Blanco nos diz que “o intelectual de esquerda é um inocente porque deixa de lado a dimensão do gozo. E se deixa de lado a dimensão do gozo pode acreditar que poderia criar-se um mundo novo, o paraíso do mundo da igualdade, da justiça, da ausência de exploração[9]”. No Seminário 17, Lacan nos diz que “a intrusão na política só pode ser feita reconhecendo-se que não há discurso – e não apenas o analítico – que não seja do gozo[10]”.

As construções de Laurent em torno do termo “falasser político”, centrado na passagem que Lacan faz do inconsciente freudiano para o falasser. evidenciam que a “abordagem pelo falasser permite retomar, de modo renovado, o comentário ‘o inconsciente é a política’. A identificação, mecanismo político por excelência, pode ser relida a partir da inscrição sobre o corpo, a partir do acontecimento de corpo[11]”, na direção avessa à da biopolítica, portanto, não sem o particular do gozo de cada um.

Como esta perspectiva clínica tem efeitos políticos? Como o falasser, com seu corpo/gozo, pode entrar em cena produzindo efeitos no mundo que não sejam marcados nem pelo ideal de harmonia, nem pela pulsão de morte? Como entrar com o corpo de uma boa maneira, fazendo ondas, sem visar explodir as diferenças?

Bassols[12] nos mostra que “dizer falasser é dizer o ser” e que “só há ser pelo fato de dizer”. Nesta via, Bassols enfatiza que o termo lacaniano falasser condensa “dizer” e “ser” de uma só vez “para que algo seja pelo fato mesmo de dizer”. Assim, o falasser é sempre um ato de criação” que tem propriedades capazes de desmontar e fazer explodir a tirania do discurso do mestre contemporâneo.

Produto de um enodamento entre corpo e linguagem, o falasser é um dos paradigmas do último ensino de Lacan que evidencia um “para todo”, ou seja, “que todo mundo delira, seja com seu corpo, seja com a linguagem[13]”, indo na contramão da vertente classificatória e segregacionista da biopolítica.

 


[1]           LACAN, J. “O Seminário, livro 19: …ou pior”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012, p. 227.
[2]           LAURENT, É. “O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo”. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
[3]           Cartel composto por: Carmen S. Cervelatti, Eliane C. Dias, Fabiola Ramon, Luiz Fernando C. da Cunha (+1), Niraldo de Oliveira Santos, Luiz Gonzaga S. Júnior e Rosângela Santos.
[4]           MILLER, J-A. Conversation d’actualité avec l’École espagnole du Champ Freudien, 2 mai 2021 (II). La Cause du désir. Paris: Navarin Éditeur; nr 109 décembre 2021, p. 34.
[5]           Idem, p. 42.
[6]           LACAN, J. “O Seminário, livro 19: … ou pior”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012, p. 131.
[7]           LACAN, J. “O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008, p. 219.
[8]           Idem.
[9]           BLANCO, M.F. “Psicoanálisis y política”. In: Lacan hispano. Olivos: Grama Ediciones, 2021, p. 484.
[10]         LACAN, J. “O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 74.
[11]         LAURENT, É. “O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo”. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 212.
[12]         BASSOLS, M. “Abertura”. In: Scilicet: O corpo falante – sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 9.
[13]         Idem, p. 8.