Niraldo de Oliveira Santos (EBP/AMP)
Lacan, no Seminário 19[1], já nos advertia de que nosso futuro não seria cor-de-rosa e que o racismo, que se enraíza no corpo, ainda não havia mostrado suas últimas consequências. Éric Laurent nos apresenta o falasser político[2] como portando, em si mesmo, a capacidade de fazer frente à segregação e à biopolítica, tão marcantes em nossos tempos. Como isso se dá?
As linhas que seguem são a tentativa de desdobramento desta questão e decorrem das discussões, ainda em andamento, no cartel “Ciência, política e civilização”[3].
Na Conversação com a Escola espanhola do Campo Freudiano, realizada no dia 02 de maio de 2021 para a ocasião do lançamento do livro “Polêmica política”, Anna Aromí cita Lacan e pergunta à Jacques-Alain Miller por que temos tanta dificuldade em produzir no campo político “uma interpretação que produza efeitos, ou seja, que faça ondas”. Miller diz, em uma primeira resposta, “que é necessário correr riscos”, e que “sem isso, não se produzem ondas[4]”.
Esta passagem me remete diretamente ao tom vibrante presente desde as primeiras reuniões do referido cartel, quando os integrantes se perguntam, cada um à sua maneira, como a psicanálise e o Ensino de Lacan podem ler, interpretar e contribuir com a diminuição da barbárie no campo político e na civilização atuais.
Ainda na Conversação de 02 de maio de 2021, Miller enfatiza que havia, “por parte de Lacan, um desejo de analisar a Escola como um fenômeno coletivo dentro de uma sociedade”, e que o momento atual convoca os analistas para serem “analistas da experiência da civilização, para além da Escola, que eles sejam analistas dos fenômenos sociais[5]”.
Faço uma retomada do que, no Ensino de Lacan, provocou em mim ondas e me fisgou transferencialmente. Destacam-se as proposições lógicas impactantes que apontam para a inexistência, o “não há”: “não há diálogo”, “não há relação sexual”, “não há harmonia entre os sexos”, “A mulher não existe”, “o Outro não existe”, “não há como amar ao próximo como a si mesmo”. Todos estes aforismos deixam sua marca subversiva, na contramão do discurso do mestre, porque são modos de apontar para o real. Podemos dizer que estas proposições lacanianas reverberam, possuindo efeitos também em outros discursos. Mas é importante lembrar a afirmação fundamental que Lacan nos apresenta no Seminário 19: “Há Um”[6]. Como inserir, no campo da política, tanto a perspectiva do não-todo, por um lado, quanto a do gozo – decorrente da primeira, por outro?
No Seminário 7, Lacan descreve o intelectual de esquerda como “um fool, um inocente, um parvo[7]” e contrapõe ao intelectual de direita, a quem aponta como “canalha[8]”. A este respeito, Manuel Fernández Blanco nos diz que “o intelectual de esquerda é um inocente porque deixa de lado a dimensão do gozo. E se deixa de lado a dimensão do gozo pode acreditar que poderia criar-se um mundo novo, o paraíso do mundo da igualdade, da justiça, da ausência de exploração[9]”. No Seminário 17, Lacan nos diz que “a intrusão na política só pode ser feita reconhecendo-se que não há discurso – e não apenas o analítico – que não seja do gozo[10]”.
As construções de Laurent em torno do termo “falasser político”, centrado na passagem que Lacan faz do inconsciente freudiano para o falasser. evidenciam que a “abordagem pelo falasser permite retomar, de modo renovado, o comentário ‘o inconsciente é a política’. A identificação, mecanismo político por excelência, pode ser relida a partir da inscrição sobre o corpo, a partir do acontecimento de corpo[11]”, na direção avessa à da biopolítica, portanto, não sem o particular do gozo de cada um.
Como esta perspectiva clínica tem efeitos políticos? Como o falasser, com seu corpo/gozo, pode entrar em cena produzindo efeitos no mundo que não sejam marcados nem pelo ideal de harmonia, nem pela pulsão de morte? Como entrar com o corpo de uma boa maneira, fazendo ondas, sem visar explodir as diferenças?
Bassols[12] nos mostra que “dizer falasser é dizer o ser” e que “só há ser pelo fato de dizer”. Nesta via, Bassols enfatiza que o termo lacaniano falasser condensa “dizer” e “ser” de uma só vez “para que algo seja pelo fato mesmo de dizer”. Assim, o falasser “é sempre um ato de criação” que tem propriedades capazes de desmontar e fazer explodir a tirania do discurso do mestre contemporâneo.
Produto de um enodamento entre corpo e linguagem, o falasser é um dos paradigmas do último ensino de Lacan que evidencia um “para todo”, ou seja, “que todo mundo delira, seja com seu corpo, seja com a linguagem[13]”, indo na contramão da vertente classificatória e segregacionista da biopolítica.