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A criança entre a mulher e a mãe1*


lacan21 - 10 de abril de 2017 - 0 comments

JACQUES-ALAIN MILLER

Alejandro Bilbao. UBA. “Sostén”. Acrílico sobre tela.

Escolhido por François Ansermet em uma lista em que eu desdobrava uma variedade diante dele, a partir de uma de suas sugestões, no decurso de uma entrevista, mais uma2 que seu entusiasmo sabe suscitar, o título deste Colóquio justifica-se no Seminário 4 de Lacan, cujo título se destaca na sequência dos ditos seminários, já que, parece-me, é o único a enunciar um conceito, a relação de objeto, retirada de um conjunto de doutrinas dos alunos de Freud, que se pode designar como a “Vulgata pós-freudiana”, e uma expressão que é, de maneira formal, recusada por Lacan, apesar de ele fazer dela o título do Seminário.

Contudo o título desse Colóquio diz respeito, fundamentalmente, à demonstração que Lacan persegue em seu Seminário. Essa demonstração – o centro da demonstração de Lacan – é a de que o objeto só encontra seu justo lugar na psicanálise ao dispor-se à função de castração. E é essa dimensão que é desconhecida tanto na Vulgata pós-freudiana como na observação da criança, por exemplo, no registro das interações mãe/criança, que é muito praticada, creio, atualmente, em Lausanne.

Assim, a demonstração de Lacan compreende, sucessivamente, três tempos, desdobra-se em três escansões no Seminário. A demonstração de que o objeto só encontra seu justo lugar ao dispor-se à função de castração, passa, inicialmente, pela homossexualidade feminina, em que as consequências do incômodo da decepção, devido à falta do dom paterno no objeto criança, como substituto da falta fálica, podem até levar o sujeito a fazer da mulher o objeto eletivo de um amor com o qual censura o pai. Esta é a demonstração de Lacan: o amor da jovem homossexual pela mulher é um amor com o qual ela censura o pai, é um amor que mostra ao pai como se pode, como se deveria amar uma mulher.

Em primeiro lugar, portanto, a homossexualidade feminina; em segundo, a perversão masculina, na qual o objeto fetiche é apresentado debatendo-se sobre a tela que vela o falo que falta à mulher.

Terceiro tempo da demonstração de Lacan, a fobia infantil é ilustrada pelo caso princeps de Freud, o caso do pequeno Hans. Sobre esse terceiro tempo da demonstração clínica, convergem os dois primeiros: a substituição da criança ao falo, evidenciada na psicogênese freudiana da homossexualidade feminina, e a identificação do menino ao objeto imaginário do desejo feminino.

A meu ver, a lição do Seminário 4 é a de que aquilo que permanece desconhecido, quando se concentra a atenção na relação mãe/criança – concebida de uma forma dual, recíproca, se assim o desejarem, como se a mãe e a criança estivessem fechadas numa esfera -, não é somente a função do pai. Sabe-se que Lacan contribuiu muito mais do que seria necessário em relação ao pai. Éric Laurent e eu estivemos na Tavistock Clinic, há uns dez anos atrás, e acolheram-nos dizendo: “Ah! os lacanianos. Vocês vão nos falar do pai”; e apresentaram-nos como “aqueles que iam falar do pai”.

Ora, penso que a lição do Seminário é a de que aquilo que permanece desconhecido, quando se atenta na relação mãe/criança, não é somente a função do pai, cuja incidência sobre o desejo da mãe é, sem dúvida, necessária para permitir ao sujeito um acesso normativo à sua posição sexual. É, também, o fato de a mãe não ser “suficientemente boa” – retomando a expressão de Winnicott – quando apenas veicula a autoridade do Nome-do-Pai. É preciso, ainda, que a criança não sature, para a mãe, a falta em que se apoia o seu desejo. O que isso quer dizer? Que a mãe só é suficientemente boa se não o é em demasia, se os cuidados que ela dispensa à criança não a desviam de desejar enquanto mulher. Quer dizer – empregando os termos utilizados por Lacan em seu escrito “A significação do falo”3 – que a função do pai não é suficiente; é preciso, ainda, que a mãe não esteja dissuadida de encontrar o significante de seu desejo no corpo de um homem.

A metáfora paterna, com a qual Lacan transcreveu o Édipo freudiano, não significa somente que o Nome-do-Pai deve reprimir o desejo da mãe, submetendo-a ao cabresto da lei.

A metáfora paterna remete, a meu ver, a uma divisão do desejo a qual impõe, nessa ordem do desejo, que o objeto criança não seja tudo para o sujeito materno. Quer dizer que há uma condição de não-todo, que o objeto criança não deve ser tudo para o sujeito materno, mas que o desejo da mãe deve se dirigir para um homem e ser atraído por ele. Portanto isso exige que o pai seja, também, um homem.

Da mesma maneira, não hesitarei em parodiar a réplica imortal do Tartuffe, de Molière, voltando-me para o sujeito da enunciação hipócrita, que se esconde no anonimato de um “alguém”, e devolverei a esse sujeito da enunciação hipócrita sua marca pessoal, dizendo: “Para ser mãe, não deixo de ser mulher”.

Por isso, é uma divisão do desejo que, levada ao extremo, justifica o ato de Medeia, um ato próprio para ilustrar, certamente pelo horror, que o amor materno não se sustenta na reverência pura à lei do desejo, ou que só se sustenta nele se uma mulher, enquanto mãe, permanecer, para um homem, a causa de seu desejo. Nesse caso, portanto, quando Jasão vai embora, Medeia deixa de estar nessa posição.

Isso quer dizer que a ênfase dada ao valor de substituto fálico da criança – ao seu valor de Ersatz, como diz Freud – se perde quando promove, de maneira unilateral, a função de preenchimento da criança e faz esquecer que esta criança não deixa de dividir, no sujeito feminino que está tendo acesso à função materna, a mãe e a mulher; a criança divide, no sujeito feminino, a mãe e a mulher.

O objeto criança não somente preenche, como também divide, e digamos que é isso que o título deste colóquio ressalta. É essencial que ele divida. Como já se assinalou, é fundamental que a mãe deseje outras coisas além dele. Se o objeto criança não divide, ou ele sucumbe como dejeto do par genitor, ou, então, entra com a mãe numa relação dual que o alicia – para empregar o termo de Lacan – o alicia com fantasia paterna.

Há, assim, uma divisão bastante simples: a criança preenche ou a criança divide. As consequências clínicas dessa divisão são patentes. É por isso que, como já lembramos, nas “Notas a Jenny Aubry”4, Lacan divide cuidadosamente a sintomatologia infantil segundo sua emergência a partir do par familiar ou de sua inscrição, de maneira prevalente, na relação dual mãe/criança. Tal como Lacan o apresenta, há dois grandes tipos de sintomas: os que dizem respeito, verdadeiramente, ao par familiar e os que se atêm, antes de tudo, à relação dual da criança e da mãe.

Em primeiro lugar, o sintoma da criança é mais complexo caso resulte do par familiar, caso traduza a articulação sintomática desse par familiar. No entanto, por isso mesmo, ele também é mais sensível à dialética que a intervenção do analista pode introduzir no caso. Quando o sintoma da criança diz respeito à vinculação do par pai/mãe, ele já está articulado à metáfora paterna, plenamente articulado à metáfora paterna, plenamente envolvido nas substituições e, portanto, as intervenções do analista podem prolongar o circuito e fazer com que essas substituições prossigam.

Em segundo lugar, ao contrário, o sintoma da criança é bem mais simples se ele diz respeito, essencialmente, à fantasia da mãe; mas, nesse caso, ele também é maciço e, no limite, apresenta-se como um real indiferente ao esforço para mobilizá-lo pelo simbólico, pois, então precisamente, não se tem a articulação do caso precedente. E quando o sintoma é, assim, maciço, lê-se nele, sem dificuldade, o que é o caso do desejo do próprio sujeito.

Lacan toma, a propósito, o exemplo do sintoma somático nessas duas notas. Alexandre Stevens lembrou-me que eu tinha evocado esse texto no seminário da D.E.A., e devo dizer que é necessário, realmente, que eu o republique, pois as duas notas… São uma só. Quando Jenny Aubry, teve a bondade de trazer-me esses papéis, eram dois papéis… Não belas folhas bem escritas, eram pedaços de papel que Lacan havia rasgado. Ela os trouxe para mim e disse: “Ele deu-me esses dois papéis”. Talvez eu tenha ficado um pouco sugestionado; olhei e estudei aquilo como duas notas. É evidente que se trata de um único texto e que, efetivamente, o texto começa na nota dois e prossegue no texto da nota um. É um único texto, que tem sua coerência.

O sintoma somático é, portanto, o exemplo de Lacan, que mostra, primeiramente, que o sintoma somático da criança alimenta, na mãe neurótica, o motivo da culpabilidade; que a perversidade, pela qual o seu desejo pode estar marcado, se traduz na fetichização do sintoma infantil; e, em terceiro lugar, que, nos casos de psicose da mãe se vê o sintoma somático da criança encarnar sua foraclusão.

Eu dizia: “Ou a criança preenche, ou a criança divide”. Quanto mais a criança preenche a mãe, mais ela a angustia, de acordo com a fórmula segundo a qual é a falta da falta que angustia. A mãe angustiada é, inicialmente, aquela que não deseja, ou deseja pouco, ou mal, enquanto mulher.

Nega-se a perversão às mulheres porque a clínica reserva para os homens a possibilidade de alienar seu desejo ou encarnar a causa desse desejo em um objeto fetiche. Isso, porém, significa não ver que a perversão é, de certa forma, normal do lado mulher e é aquilo que se chama de amor materno que pode chegar até a fetichização do objeto infantil. Ele conforma-se à estrutura que a criança, como objeto do amor, só demanda se exercer a função de velar o nada, que é, cito, “o falo enquanto ele falta à mulher”.

Sem dúvida, a criança, mesmo fetichizada, distingue-se do objeto pequeno a da fantasia pelo fato de ela ser animada, enquanto o objeto pequeno a da fantasia é, por excelência, inanimado. Contudo a expressão “marionete da mãe”, que faz a ladainha de uma mulher neurótica em análise, essa expressão – “marionete da mãe” – mostra bem em que sentido a animação da criança é compatível com sua fetichização, porque é por ter sido uma espécie de criança fetiche para sua mãe que essa mulher sofre, ainda, muitos anos mais tarde.

Sem dúvida, se é um fetiche, é um fetiche normal, e a relação do amor materno, se é marcada de ilusões que, naturalmente, servem de motivo de deboche para os mais chegados, distingue-se por uma estabilidade inteiramente marcada por vacilações imaginárias da perversão propriamente dita. A criança, no entanto, só é o “fetiche normal”, entre aspas, como eu disse, se o desejo materno se inscreve na sua norma masculina, que não é distinta… Para que ele seja um fetiche normal, é preciso, ainda, que o desejo materno responda à sua norma masculina, que não é diferente da estrutura própria à sexuação feminina, que Lacan designou como o não-todo. O fetiche é normal apenas quando a criança não é tudo para o desejo da mãe.

Bastaria fazer-se referência à estrutura de série que engendra o não-todo para compreender-se a razão fundamentalmente que dá à posição de filho único aquilo que eu chamaria de seu caráter aleatório ou difícil. Moderemos isso, porém, dizendo que acontece, frequentemente, que a unicidade do filho único é apenas aparente e que o pai se qualifica para o título de filho da esposa.

Entretanto, essa posição de filho único é, talvez, menos problemática do que aquela de ser, no seio de uma fraternidade numerosa, o único filho que é objeto da afeição materna. As devastações subjetivas que podem decorrer dessa dileção materna exclusiva sobre uma criança repercutem muito mais do que a negligência da mulher que trabalha, que alguns políticos, na França e em outros lugares, dizem ser uma grave ameaça para a família.

Quanto ao caso da mulher adúltera é, de regra, sobre o filho homem que reflete o sintoma do par familiar, enquanto, como pude observar, para a menina, isso é bem mais leve de carregar.

Para terminar, um breve retorno ao Seminário 4. Lacan começou a captar a posição da criança situando-a em relação ao falo, que ele ainda qualifica de objeto nesse Seminário, antes de tomá-lo como o significante do desejo. Nada interdita: tudo convida, ao contrário, a transcrever a equivalência freudiana da criança e do falo em termos de metáfora (eu abrevio). A metáfora infantil, como se pode chamá-la, pode inscrever-se como a consequência da metáfora paterna. E vê-se bem o quanto ela ameaça, primeiro, fazer sumir do mapa o desejo do falo no lado mulher e, segundo, fixar o sujeito a uma identificação fálica, a ponto de Lacan ter podido fazer do desejo de ser o falo a fórmula constante do desejo neurótico.

O que é preciso dizer, em consequência, é que a metáfora infantil do falo, ou seja, o fato de que a criança seja o equivalente do falo, ou que o desejo, o Wunsch de um filho, o Wunsch de pênis, diz Freud, pode ser satisfeito pela substituição do desejo de um filho. O que é preciso dizer é que a metáfora infantil do falo só é bem sucedida ao falhar. Ela só é bem sucedida se não fixa o sujeito à identificação fálica e se, ao contrário, lhe dá acesso à significação fálica, na modalidade da castração simbólica, o que torna necessário que seja preservado o não-todo do desejo feminino. O Nome-do-Pai e o respeito pelo Nome-do-Pai não bastam; é preciso, ainda, que seja resguardado o não-todo do desejo feminino e que, portanto, a metáfora infantil não recalque, na mãe, seu ser mulher. É sobre esse ponto que é preciso, com Lacan, completar Lacan.

No seu célebre artigo “A significação do falo”5, em que transcreve os estudos de Freud sobre a vida amorosa, Lacan atribui à função masculina a divergência entre o amor e o desejo e, ao lado mulher, a convergência do amor com o desejo. No entanto, ele assinala, igualmente, que a convergência feminina é compatível com um desdobramento do objeto, um desdobramento do ser homem, que ela afasta da sua posição de falóforo, suscitando ou exigindo seu amor, o que implica, como efeito, fazer o homem faltar, exigir que ele dê alguma coisa que não tem.

Como não completar, aqui, essa construção de Lacan acrescentando, que a divergência… Acrescentando, no que seria a convergência do desejo feminino, em que Lacan admite, contudo, uma espécie de desdobramento interno à posição do homem… Como não acrescentar a divergência que, precisamente, o amor do homem nela introduz quando ele se opõe à intrusão da criança no par conjugal? A divergência do desejo feminino sobre a criança. Portanto, é preciso completar o que Lacan diz em “A significação do falo”, pela consideração da criança que introduz, que torna presente, uma divergência flagrante do desejo feminino.

Essa divergência do desejo feminino sobre a criança é, nesse caso, motivo de angústia para o pai, desta vez, segundo a outra fórmula da angústia, que relaciona o incômodo da angústia à emergência do desejo do Outro como enigma do ser. Nessa circunstância, portanto, é o nascimento da criança que provoca o retorno de angústia ao pai: “Que quer ela então? Quem sou eu, pois, para ela?”. Um homem, eu diria, só se torna pai se aceitar o não-todo que constitui a estrutura do desejo feminino.

Quer dizer, nesse sentido, que a função viril apenas se realiza na paternidade quando essa paternidade significa um consentimento para que essa outra seja Outra, ou seja, desejo fora de si mesmo.

A falsa paternidade, a paternidade patogênica – observamo-la no pai do presidente Schreber – a falsa paternidade é aquela que vê o sujeito identificar-se ao Nome-do-Pai como universal do pai, para tentar constituir-se o vetor de um desejo anônimo, para encarnar o absoluto e o abstrato da ordem.

A função feliz da paternidade é ao contrário, a de realizar uma mediação entre as exigências abstratas da ordem, o desejo anônimo do discurso universal, de um lado, e o que decorre, para a criança, do particular do desejo da mãe. É o que Lacan chegou a nomear com uma expressão que tentei, sem conseguir, até o presente, apreender exatamente, mas, que, agora, penso ter conseguido: é o que ocorreu a Lacan chamar de “humanizar o desejo”. Ele dizia que é preciso que o pai humanize o desejo, e creio ter compreendido e desenvolvido o que quer dizer essa expressão, cujo peso me parece evidente.

Na impossibilidade de admitir o particular do desejo no outro sexo, o pai destrói, na criança, o sujeito sob o outro do saber. Daí, o pai, o falso pai, pressiona essa criança, cada vez mais, a encontrar refúgio na fantasia materna, a fantasia de uma mãe negada como mulher.

Concluo. Pude verificar, ontem, que o que se retinha das intervenções apresentadas permanecia numa impressão global, em que sobrenadavam um ou dois enunciados naufragados. Bem, era uma impressão de coquetel, e os amigos com quem falei não me desmentirão. Que quero então, que se retenha da minha exposição? Que é bom que o desejo seja dividido, que o objeto não seja único, que só se celebrem os olhos de Elsa para que eles não os vejam tramar, à parte, com os jovens rapazes, que só se faz de um homem um deus para castrá-lo melhor e que isso não é amar como seria conveniente.

Em segundo lugar, que o desejo não saberia ser anônimo, nem universal, nem puro, nem saberia ser o desejo de “alguém”, nem o de um deus, nem o do povo, se o assunto deve ser transmitido através das gerações. Que o desejo do analista, igualmente, por mais normatizado que seja, não saberia ser um desejo anônimo, universal e puro. Obrigado.

Lausanne, 2 de junho de 1996. Segue uma intervenção de Leslie Pons, que não foi transcrita, e a Discussão.

Discussão:

François Ansermet: Bem. Muito rapidamente, eu queria colocar uma questão a Jacques-Alain Miller a respeito de sua exposição centrada no fato de que a criança preenche e divide. Na realidade eu estou me perguntando, ao ouvi-lo, nesse desenvolvimento, o que acaba por fazer que o objeto não seja único, que o desejo não seja universal, que o desejo seja dividido, que a mãe não seja a mãe ideal, pois é ela, justamente, que causa problema. O pai ideal? Todas essas figuras ideais? O que o leva, portanto, a fazer da criança um não-todo para o desejo da mãe e a assumir essa posição, essa questão, esse desenvolvimento sobre a criança que preenche e divide? Eu estou me perguntando, finalmente, se isso não levaria a se considerar que seria possível atribuir à criança  certa função paterna, em todo o caso, à ocorrência inesperada de uma criança na história de um homem e de uma mulher? Aliás, isso seria uma maneira de revisitar a frase do poeta romântico inglês Wordsworth, citada por Freud e retomada por Lacan no Seminário 17 e, mesmo, em muitos outros momentos: “A criança é o pai do homem”. Então, o que você pensa dessa questão e, fundamentalmente, dessa função paterna? É assim que se pode compreender, também, a maneira como você desenvolve a metáfora infantil do falo, que só tem sucesso ao fracassar? Encontra-se, pois, nesse fracasso,  certa função paterna?

Uma segunda observação. Você disse que “um homem só se torna pai se aceitar o não-todo do desejo feminino”. Isso leva, efetivamente, ao Édipo, e eu gostaria de lhe propor uma questão sobre ele. Como dizia Lacan, no Seminário “A lógica da fantasia”: “O navio de Édipo mantém-se flutuando sobre um oceano de gozo feminino”. Foi Marie-Jean Sauret, com quem trabalho num cartel, que – a propósito deste colóquio, e eu lhe retribuo, já que ele não pôde vir, mas, enfim, discutimos a respeito – me enviou esta citação de Lacan. Cito: “Que oceano de gozo feminino – eu o pergunto – não foi preciso para que o navio de Édipo flutuasse sem afundar, até que a peste veio lhe mostrar, finalmente, de que era feito o mar de sua felicidade?”. Daí, uma questão sobre o Édipo, em relação ao que foi discutido[…]. Eu mesmo fazia referência a seu texto “Além do Édipo”, em que você, a partir do texto de Lacan “A significação do falo” – ele parece dar-se conta do primado do falo sem referência ao Édipo -, se propõe a questão de saber se a castração procede do pai ou da própria linguagem. Após essa exposição que você fez, ela procede da divisão entre a criança que preenche e a criança que divide? Da própria criança? Da criança como função paterna?

Jacques-Alain Miller: Sim, bem rapidamente. Com efeito, desta vez, apresentei a criança como introduzindo uma barra, introduzindo a divisão, separando – se posso assim dizer! Estamos entre nós. Você traduz isso, condensa-o dizendo “função paterna da criança” e jogando com o equívoco da fórmula “a criança é o pai do homem”. Eu o aceito de bom grado. É uma maneira de concentrar essas diferentes funções. Evidentemente, é um pouco provocante dizer “função paterna da criança”; mas por que não? De início, poder-se-ia afirmar que é justamente ela que faz o pai e a mãe. Com efeito, ela tem o papel de… Eventualmente ela os separa. Enfim, ela os une, de um lado, e os separa, de outro; ela divide cada um, portanto. Muito bem, tentemos fazer funcionar sua fórmula; mas isso me convém inteiramente.

Observações de Ansermet a Leslie Pons

Jacques-Alain Miller: Sim, eu gostaria de fazer uma observação sobre a exposição de Leslie Pons, a de que, em um dado momento, seria necessário repetir exatamente sua fórmula; mas, enfim, você evoca um gozo do qual se fala pouco na psicanálise, que é um pouco o gozo da criança nos braços da mãe e, mesmo, nos cavalos-de-pau, o gozo nos cavalos-de-pau do carrossel. Então, eu gostaria de dizer alguma coisa sobre esses dois…, sobre o que você distingue aí. Você sabe quanto o gozo nos braços da mãe, que é preciso ver em que idade se observa isso. Tive, porém, a oportunidade de observá-lo de perto nestes últimos tempos. Penso então, que o gozo nos braços da mãe não é, necessariamente, da ordem do contentamento, porque tal fato pode provocar, nos braços da mãe, uma fúria… Vejamos, por exemplo, um episódio em que, verdadeiramente, há contentamento. Num dado momento, dirijo-me a um par formado pela mãe e a criança, para a menininha; esta, que dois meses antes, só queria passar de braço em braço, agora, ao contrário, com um sorriso, esconde um pouco o rosto no ombro, na clavícula da mãe, com um pequeno sorriso. E, depois, isso se repete durante todo um tempo. Assim sendo, constato, inicialmente, que esse procedimento obedece a um movimento de alternância, que é, na verdade, a estrutura do fort-da, que está presente e é uma estrutura perfeitamente articulada. Isso, com certeza, já é uma aprendizagem; não se pode dizer aprendizagem da linguagem, mas já é a forma principal de aparição e desaparição. E chego a suspeitar – como vim para cá, não pude terminar minhas observações – que esteja mesmo muito ligado à diferença sexual, quer dizer, à constatação de que essa retenção ocorre não somente com a mãe, mas também com a avó, enquanto o avô é colocado do outro lado. Portanto seria necessário observar o que se passa com o pai ou com outros…, com amigos, para saber se é de fato, uma opção por aquelas que se ocupam dos cuidados materno-infantis. Vejo nisso, pois, ao mesmo tempo, uma alternância significante, no mínimo um esboço de diferenciação dos sexos, e isso muito bem articulado. Esse é o primeiro ponto.

Agora, o segundo ponto concerne ao gozo nos cavalos- de-pau do carrossel. Eu mesmo tenho lembranças disso. Gostei muito dos cavalos-de-pau e lembro-me, com efeito, em que consistia essa brincadeira. Montávamos nos cavalinhos-de-pau e, num dado momento, enquanto rodávamos pequenos anéis redondos caíam; com um bastãozinho que nos davam deveríamos, ao passar, fisgar o anel e conservá-lo. Em seguida, um segundo anel caía, e assim por diante. Bom, não vou desenvolver isso!

Leslie Pons: Só uma palavrinha a respeito de seu último exemplo. Eu diria que, nesse momento em que se deve introduzir anel – com efeito, você não fala isso, mas eu compreendi bem -, isso significa que existia o aleatório, ou seja, que não dava certo todas as vezes. No entanto não é desse movimento que eu falava e, sim, do movimento repetitivo.

Jacques-Alain Miller: Existem, também, os manejos ou cavalos-de-pau sem essa brincadeira, mas eu os achava muito menos interessantes.

Pergunta da plateia:

Miller, você fala de humanizar o desejo. Será que entendi bem que você opõe essa humanização à universalidade e à idealidade?

Jacques-Alain Miller:

Lacan emprega a expressão “humanizar o desejo” num texto sobre Gide, se não me falha a memória (“Faltou a palavra que humaniza o desejo”). É, sem dúvida, uma linguagem que Lacan não emprega mais nos anos seguintes, porque ele não tem mais este vocabulário. Na realidade, porém, dei-lhe certo peso, procurando um pouco a significação que se poderia dar a essa expressão. E pareceu-me, como lhes dizia esta manhã, que se poderia dar a ela a seguinte significação, relativamente satisfatória: fundamentalmente, o pai tem uma função de mediação entre aquilo que, digamos, é o desejo anônimo da cultura – O que isso quer de nós? Isso que se quer transmitir? Por exemplo, o saber. Há, nesse caso, a pressão de um Outro anônimo que, quando cai de uma só vez ou sem mediação sobre um sujeito, ou o esmaga, ou o faz fugir, chegando mesmo a levá-lo a… E se o pai se identifica com essas exigências anônimas da cultura, pode-se dizer, eu proporia, que a criança se refugia, consequentemente, na fantasia da mãe, ou se vê esmagada por esse peso.

E que a função feliz da paternidade é a de particularizar esse universal. É a de se permitir que se escolha que se tome e que se deixe que se mantenha distância… e que isso se particularize. É a de possibilitar que isso se particularize. Como o presidente acabou de dizer, fui sintético e por isso, não pude apresentar todas as nuances e variações. Penso que, com efeito, o universal nu e cru é inteiramente alienante: aliena a verdade sempre particular do sujeito. Ao mesmo tempo, não se pode viver no particular; por isso há uma manobra… É sumário utilizar os conceitos de universal e particular, mas eles são de algum modo, conceitos que, todo mundo pode compreender, via uma formação clássica, e, numa apresentação rápida, é o mais cômodo… É por isso que os empreguei, e, também, porque não é muito fácil elaborar outros.

Texto traduzido por Cristiana P. de Mattos, Cristina Vidigal, Inês Seabra e Suzana Barroso.
Revisão: Ana Lydia B. Santiago.
* Essa versão foi publicada na Revista Opção Lacaniana online nova série. Ano 5 • Número 15 • novembro 2014 • ISSN 2177-2673
1 Título do Colóquio organizado, nos dias 01 e 02 de junho de 1996, em Lausanne, pelo Grupo de Estudos de Genebra. Traduzido ao português e publicado originalmente no Brasil In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 21. São Paulo: Edições Eólia.
2 N.T.: É possível que J.-A. Miller esteja fazendo referência à entrevista realizada por F. Ansermet sobre o Seminário – “Jacques-Alain Miller conversa sobre o Seminário com François Ansermet” -, publicado pela Navarin. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_6/Entrevista_sobre_o_seminario.pdf>.
3 LACAN, J. (1998/1958). “A significação do falo. Die Bedeutung des Phallus”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
4 IDEM. (1969/abr. 1998). “Duas notas sobre a criança”. In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 21. São Paulo: Edições Eólia.
5 IDEM. (1998/1958). “A significação do falo. Die Bedeutung des Phallus”. Op. cit.