Scroll to top

O encontro da psicanálise com outros discursos


lacan21 - 18 de maio de 2023 - 0 comments

Gabriela Salomon (EOL)

A psicanálise com outros discursos

Tal como propôs Christiane Alberti na conferência proferida na Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires (UBA), “a psicanálise é hoje uma experiência, uma teoria, uma interpretação do mundo contemporâneo pela qual vale a pena se interessar. Porque é o único discurso, entre todos os laços sociais, que não pretende dominar[1]”. Isso põe em primeiro plano a noção de discurso. Recordemos o que Lacan dizia em Vincennes a respeito. “Há quatro discursos. Cada um se toma pela verdade. Só o discurso analítico é exceção. Seria melhor que ele dominasse, poder-se-ia concluir, mas justamente esse discurso exclui a dominação ou, dito de outro modo, ele nada ensina. Ele não tem nada de universal: por isso mesmo não é matéria de ensino.[2]

Por que o Discurso Analítico é o único que não domina?

Temos no discurso do Mestre, no lugar do agente, o S1: um mestre que quer dominar, que quer que as coisas funcionem, mas não quer saber porque funcionam. No discurso Universitário é o saber que ocupa o lugar de domínio. No discurso Histérico o agente é ocupado pelo sujeito que coloca o Mestre para trabalhar, para produzir um saber sobre a relação sexual que não existe. Por fim, chega-se ao discurso do analista, no qual o lugar do agente é ocupado pelo semblante de objeto. O analista localizado nesse lugar busca causar o desejo no analisante, desejo que não tem nada de universal, como nos indicou Lacan, mas é um desejo singular.

Miller nos orienta que a psicanálise não tem nada de universal. Dirá que “… a referência essencial do discurso analítico é o “não-todo” … No sentido em que aquilo que vale para um, não vale para outro[3]”.

A psicanálise é uma experiência de palavra que realiza uma oferta. Uma oferta de uma experiência singular que tem a palavra como meio. É necessário que um sujeito se encontre com um analista que oferte a palavra. Já no Seminário 1, Lacan diz que quando um sujeito fala, seu corpo já está implicado e o sujeito “sempre diz mais do que quer dizer[4]”. Sabemos que nem tudo pode ser apreendido pela palavra, pois há um real em jogo, fora de sentido. É através da transferência e pela crença no sintoma que uma análise poderá começar. Nos casos de neurose, isso se produz via abertura do inconsciente, que se verifica nos lapsos, nos atos falhos e nos sonhos. É por isso que “Lacan nunca parte de um Eu sou, mas de um Tu és”. Isto é o que você é como efeito da palavra e não como mestre da palavra[5]”. É por esse Tu és isso que algo do gozo do sujeito pode ser nomeado.

Com o que nos encontramos hoje?

Hoje a palavra está desvalorizada, as políticas atuais em matéria de saúde mental estão marcadas pelas estatísticas e pela tentativa de normalizar o que não pode ser normalizado. Miller em seu seminário “O lugar e o laço”, diz assim: “Lacan dizia que a psicoterapia “redunda no pior”… se for definida como uma tentativa de normalização desses elementos intrinsecamente anormais aos que damos nomes tais como verdade, desejo, gozo[6]”. Por outro lado, vivemos em uma época na qual os transtornos são medicados e os sintomas forcluídos. Outra dificuldade com a qual nos encontramos hoje é o fato de que se procura avaliar a nossa prática em termos de utilidade social. Miller, em seu seminário “Um Esforço de Poesia”, diz que uma sessão não tem a ver com a utilidade direta, mas com uma utilidade indireta[7].

Quais efeitos a época produz na nossa prática?

Que demandas recebemos hoje em PAUSA?[8]

É interessante constatar que aquele que faz sua demanda à PAUSA sabe que ali há uma oferta de praticantes da psicanálise para atender as urgências subjetivas. Nos últimos tempos, recebemos crianças encaminhadas pela Justiça, por denúncia de abuso feitas pelas mães contra seus ex-parceiros. Como a psicanálise se posiciona diante do discurso jurídico?

Uma menina de 4 anos é traída por sua mãe. A mãe fez uma denúncia na justiça porque diz que a menina foi abusada pelo pai. Na entrevista com a mãe, esta manifesta que a menina diz que o pai “lhe toca às nádegas”. Por outro lado, segundo a mãe, a menina toca os genitais. Pouco depois de começada as entrevistas, a mãe pede um relatório para o juiz. Isso é muito comum já que o que se demanda é que PAUSA valide o discurso materno. Se realiza tal relatório, tendo em conta o segredo profissional. Com que dificuldade nos encontramos?

Por um lado, devemos responder à demanda do Juiz. Por outro, escuta-se o sujeito em seu padecimento singular. Durante o tratamento em PAUSA a menina não falou e nem aludiu à sexualidade em seus jogos. Conseguiu ordenar o que nomeou “sua casa”. 

Acting out – Passagem ao Ato

Nos últimos anos, os casos de acting com risco de passagem ao ato aumentaram. Por que? São sujeito caídos do desejo do Outro, que buscam repetidamente um lugar no Outro. Trata-se, portanto, de pôr em ato, primeiramente, o que Lacan, no Seminário 10, situa como desejo do analista em sua versão “te desejo ainda que não saiba”. Lacan ao final da segunda aula desse mesmo Seminário, pergunta-se como fazer para que o outro caia em nossas redes. Menciona duas estratégias: a primeira, “Te amo, ainda que tu não queiras”, fórmula pouco exitosa. E a segunda “Eu te desejo, mesmo sem saber”. Dirá desta fórmula que não é articulável, mas está articulada […] Em todo lugar em que consegue fazer-se ouvir, por mais inarticulável que seja, esta, eu lhes asseguro, é irresistível”[9]

Uma vinheta

Uma mulher de 35 anos chega à PAUSA encaminhada pela emergência de um hospital, após uma passagem ao ato fracassado, com diagnóstico de histeria. Em sua primeira entrevista relata que, após seu parceiro lhe dizer que já não queria estar com ela, entrou na banheira e se injetou calmantes. “Não quero mais viver”, insistia nas entrevistas. Ela fora abandonada por seu pai aos 12 anos e, a partir daí, viveu com sua mãe e avó. Ela atuava como profissional de saúde. Não estabelecia laços sociais. Uns dias antes de sua passagem ao ato, decidiu tornar-se independente e morar sozinha… com seu gato. Rapidamente sabíamos que estávamos diante de uma “desordem provocada na junção mais íntima do sentimento da vida[10]”. Os três meses de tratamento lhe permitiram concluir que preferia estar sozinha e não em uma relação de casal. Encontrou o início de uma solução sintomática: fazer-se um nome com a profissão e encontrar um gosto por cuidar de animais abandonados na rua.

Como ler de boa maneira o discurso do outro?

Entendo que tanto na psicanálise pura como na psicanálise aplicada, que na verdade constituem a mesma psicanálise, trata-se de ler um sintoma.

De que maneira? Miller enfatizará que saber ler não é sem o saber dizer. “Bem dizer e saber ler estão do lado do analista, é seu apanágio, mas ao longo da experiência, trata-se de que o bem dizer e o saber ler se transfiram para o analisante.”[11] Portanto, a psicanálise não é apenas uma questão de escuta, mas também de leitura. Trata-se de apontar ao mais real do sintoma, trata-se de “privar o sintoma de sentido”.

Isto tem consequências na leitura que fazemos do discurso do Outro social.

Miller em “Um Esforço de Poesia” disse muito claramente, “não é possível psicanalisar a atualidade[12]”. O que podemos fazer é lê-la e interpretá-la. Mas isso sempre com prudência e cautela.

 

Tradução: Ana Beatriz Zimmermann
Revisão: Maria Rita Guimarães

[1]  ALBERTI, C. Conferencia “Qué puede el psicoanálisis?” YouTube UBA Psicologia, 13 de nov 2022
[2]  LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário de Ornicar. Lacan a favor de Vincennes! Correio-Revista Brasileira de Psicanálise,n.65. Abril de 2010, p.31.Tradução: Sérgio Laia. Revisão: Lúcia Grossi.
[3]  MILLER, J.A. Todo el mundo es loco I en Lacaniana 11, Buenos Aires. Grama Ediciones, Octubre 2011, p.22
[4]  LACAN J. O livro 1. Seminário Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1986, p.317.
[5]  Alberti, C. Conferência citada.
[6]  MILLER, J.A. “El lugar y el lazo”. Buenos Aires, Editorial Paidós, 1ª. Ed., p.50.
[7] MILLER, J.A. “Un esfuerzo de poesía”, Buenos Aires, Editorial Paidós, 1ª ed.2016, p.60
[8]  PAUSA: Psicoanálisis Aplicado a las Urgencias Subjetivas de la Actualidad, es un centro de asistencia docencia e investigación creado como institución sin fines de lucro en julio 2005 por la Fundación Casa del Campo Freudiano, la Escuela de Orientación Lacaniana y el Instituto Clínico de Buenos Aires
[9]  LACAN, J. O Seminário, livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 37.
[10]  LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, Rio de Janeiro. Escritos, Jorge Zahar Editor. 1988, p.565.
[11]  MILLER, J-Alain. Ler um sintoma. In: Opção Lacaniana, n.70. São Paulo: Eolia, 2015, p.13-14.
*PAUSA, dispositivo de assistência de urgências subjetivas criado pela Fundação Casa do Campo Freudiano, Escola de Orientação Lacaniana e o Instituto Clínico de Buenos Aires.
[12]  MILLER, J. A. “Un esfuerzo de poesía” Editorial Paidós, 1ª. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, 2016, p. 175

Post a Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *