Scroll to top

Reflexão sobre a prática analítica nas instituições


lacan21 - 18 de maio de 2023 - 0 comments

María Elena Lora[1] (NELcf)

A noção de ‘prática analítica nas instituições’ implica em si mesma a ideia de multiplicidade. Éric Laurent nos orienta ao assinalar que a psicanálise de orientação lacaniana é una, suas aplicações compõem uma série e uma diversidade nos diferentes dispositivos institucionais, na medida em que abrem a possibilidade de uma variedade de práticas. A prática nas instituições não supõe uma pura e simples tradução do paradigma da sessão, nem se trata de uma prática da psicanálise fora do consultório, mas de possibilitar as condições de uma prática entre vários, analistas ou não, orientada pela clínica do parlêtre e do real.

Uma experiência de trabalho em uma instituição que acolhe crianças vítimas de sequestro e expostas à violência sexual comercial possibilitou minha reflexão a respeito do fazer de um analista na instituição.

Utiliza-se a denominação de violência sexual comercial, pelo fato de em todos os casos estar presente uma transação econômica, onde o interesse comercial, a busca pelo lucro, a transformação do menino ou menina em mercadoria, em um objeto com valor de troca, se destacam. Por outro lado, a via da exploração está posta pela presença da violência sexual, estupro, dominação, coerção e sujeição à servidão sexual de crianças, reduzindo seus corpos a objetos destinados a proporcionar prazer ou excitação.

O estupro supõe um ato violento em estado quase puro, uma apropriação sexual que implica a exação de algo forçado às crianças; estamos diante de um fenômeno de violência, que ultrapassa várias formas de crueldade. A exploração sexual comercial infantil para fins de prostituição, nos permite pensar como esta forma de abuso sexual com crianças é um fenômeno ligado ao que é comumente chamado de crise da contemporaneidade, efeito da sociedade de consumo atual, resultado do casamento entre a ciência e o mercado, unidos para explorar o desejo do homem pela via do capitalismo.

Assim, os expulsos deste sistema chamado capitalismo selvagem, são o produto de um mercado, cujo movimento e dinâmica se transformaram em uma fábrica de gerar dejetos, e, entre esses restos estão as crianças. Desta forma, uma vez esgotado o valor de mercadoria, tem-se o sujeito como um resto descartável. Os dejetos humanos são um novo real fora do sentido, não regulado por uma norma, mas produzido pela instalação de um sistema e um discurso que se isenta de qualquer responsabilidade causal.

Certamente a preocupação nas instituições pela problemática social que representa a prostituição infantil e, com ela, as atrocidades às quais estão expostas as crianças, está presente. No entanto, as ações são insuficientes, na medida em que nas instituições a palavra é silenciada, ao não reconhecer o estatuto da sexualidade das crianças, aquilo que as singulariza: seu gozo; do mesmo modo, não se escuta que todo acontecimento experimentado pela criança coloca seu corpo em questão.

Algumas instituições, diante da exploração sexual comercial de crianças, se apresentam como espaço de inserção, lugares de acolhimento destas crianças consideradas vítimas, tamponando-as com respostas afetivas e exculpando-as. Igualmente, o recrudescimento da violência e da corrupção acarretam a presença de discursos que obturam a circulação da palavra, evidenciando a presença sinistra de caudilhos autoritários, delinquentes e do crime organizado, para quem as crianças são cifras, dinheiro.

Pois bem, a experiência de uma prática clínica relacionada a essa problemática foi trabalhada em uma ONG, levando em conta a presença e a iniciativa de outros interventores, uma prática que pôs o acento sobre a inter-responsabilidade de todos os integrantes e não a simples visão da interdisciplinaridade. Nesta perspectiva, colocou-se a lógica de situar que os encontros violentos na prostituição infantil, que transtornam as próprias barreiras da vida sexual das crianças, não é sem a mediação do corpo. Foi importante acolher não o sujeito, mas o sintoma, ou seja, inscrever o corpo na língua. De maneira que o corpo das crianças não seja tomado apenas como um móvel do qual se dispõe e somente se explora.

A prática psicanalítica permite desenvolver uma leitura concernente ao real e aos modos de gozar, que possibilita entender estes fenômenos de exploração sexual de crianças situando o lugar destas sem ignorar o corpo no qual se inscrevem as marcas do Outro. E, como este corpo que é violentado se encontra em dificuldades. Estes fenômenos convocaram à abertura de espaços de encontro, no quais ofertou-se a cada sujeito um lugar para falar do seu sofrimento, do seu conflito, escutando-os testemunhar, um por um em sua diversidade, sobre seu corpo e sua sexualidade, colocando a transferência em andamento. O trabalho permitiu acompanhá-los no percurso possível de alguma construção e solução singular. Vale dizer, possibilitou um saber fazer com sua posição subjetiva e ética em relação ao seu gozo.

Esta experiência de trabalho evidenciou alguns ensinamentos e impasses. Um ensinamento diz respeito a situar a noção de causa a partir da lógica da psicanálise no trabalho clínico, ou seja, proporcionar uma leitura e intervenção articulada ao modo de gozo e à sexualidade presente na vida de cada uma das crianças; outro ensinamento diz respeito a podermos situar a presença de um limite interno do campo de ação. Ambos os ensinamentos permitiram ler o trabalho e localizar aspectos críticos, por exemplo, identificou-se certa dificuldade no trabalho com os meninos, que permaneceram fechados em um silêncio inquietante, sem possibilidade de formular suas vivências. Por outro lado, no caso das meninas, algumas refugiaram-se em discursos religiosos, obturando a circulação da palavra.

O saldo desta intervenção institucional é uma experiência de trabalho que não se limitou a denunciar, mas possibilitou agir e dar lugar a um discurso alternativo orientado pela psicanálise, até um ponto em que empurrados pelo nível de violência a que estávamos expostos, os analistas e os funcionários da instituição, foi necessária a interrupção do programa. As ameaças e atos violentos contra os funcionários, o assassinato de um pedagogo executado por grupos criminosos, revelaram que a violência sexual comercial de meninos e meninas vai além da dignidade da condição humana pelo seu caráter de exploração, abuso e objetalização do parlêtre.

A partir da ética da psicanálise, ainda nos interrogamos quando dizer não a este tipo de experiência de trabalho institucional.

 

Tradução: Késia Ramos
Revisão: Paola Salinas
Bibliografia
LACAN, J. (1972) Conferência em Milão de 12 de maio de 1972. Inédito. Tradução livre.
LAURENT, E. (1996) O analista cidadão. In: Curinga, n. 13, Belo Horizonte, 1999, p. 7-13.
Laurent, E. (2002) “Acte et institution”, Lettre mensuelle – École de La Cause Freudienne 211, Paris. Tradução livre.
Lipovetsky, G. (2003) “La era del vacío: ensayos sobre el individualismo contemporáneo” Anagrama, Barcelona.
Miller, J. A. (2005) United Symptons. “El Otro que no existe y sus comités de ética” (1996-1997) Paidós, Buenos Aires
Miller, J. A. (2013) “El lugar y el lazo”, Paidós, Buenos Aires
Fundación La Paz (2010) Programa de Ação sobre Violência Sexual Comercial contra Crianças. La Paz. Disponível em: Acesso em: 13 de março 2023 Fudep – Fundación La Paz (fudepbolivia.org)
Estocolmo, Suécia (1996) Declaração Final do Primeiro Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes. Estocolmo. Disponível em: Acesso em: 13 de março 2023 http://www.csecworldcongress.org/en/stockholm/Outcome/index.htm
Revista Electrónica de Psicología Política Número 29, (2012) “Niños y niñas: sujetos de derecho o mercancía? Una mirada psicopolitica sobre la Explotación Sexual Comercial de Niños, Niñas y Adolescentes”, Argentina. Disponível em: Acesso em: 13 de março 2023 Revista Electrónica de Psicología Política (unsl.edu.ar)

 


[1] Psicanalista (AME) da NELcf -Seção La Paz

Post a Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *