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A função do amor e a época neoliberal


lacan21 - 30 de maio de 2021 - 0 comments

Ricardo Aveggio – NEL/AMP

“O que distingue o discurso do capitalismo é a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico, com as consequências que já disse. A rejeição de quê? Da castração. Toda ordem, todo discurso relacionado ao capitalismo deixa de lado, meus amigos, o que chamaremos simplesmente as coisas do amor. Vamos, hein! Não é pouca coisa.” (1)

Se o discurso do capitalismo implicava deixar de lado as coisas do amor, como a evolução do capitalismo para o neoliberalismo afeta as coisas do amor?

A definição do amor é caracterizada por uma função muito específica: a de ser um substituto para a relação sexual que não existe. O amor tende a fazer laço, a estabelecer articulações, a produzir mediações e a inventar enodamentos. O amor tenderá a se vincular, rodeando o furo da não relação sexual e colocando no jogo de vínculos e resultados o há de um e o autogozo do corpo.

Para Lacan, essa função de substituição e vinculação não se mantém inalterada diante das modificações operadas sobre o discurso do mestre. A inversão do significante mestre pelo sujeito barrado, que dá lugar ao discurso capitalista, dá início a uma modificação da relação entre o sujeito e o gozo sob o regime de Édipo, da premissa / proibição. Essa oposição começou a ser modificada com o acesso ao gozo como mais-de-gozar que impulsionou o discurso capitalista, dando lugar a uma generalização do mais na disponibilidade de objetos cujo valor de gozo prometia acesso àquilo que a castração proibia. O consumo de objetos, mecanismo central do capitalismo industrial, explora a qualidade do objeto a como mais-de-gozar, como recuperação do gozo perdido. O neoliberalismo, como segundo momento do desenvolvimento capitalista, permite o acesso ao gozo positivado ao confrontar o sujeito com uma experiência de gozo fora dos limites do simbólico. A ampliação do acesso ao gozo não parou no objeto, pois o neoliberalismo possibilitou o acesso a um gozo que não precisa mais ser roubado, usurpado, nem recuperado por meio do retorno do reprimido, como Miller postulou em seu mito da libido.

Byung Chul Han propõe diferenciar a sociedade disciplinar da sociedade de performance, argumentando que nesta última os dispositivos disciplinares típicos do capitalismo industrial já não são mais necessários para garantir a produção. O desempenho substitui a obediência coercitiva. Na sociedade da performance, os indivíduos não necessitam ser forçados a produzir, eles o fazem por sua própria vontade como parte do exercício de sua liberdade e do desenvolvimento de um projeto de realização pessoal e individualista, no qual essa dita liberdade se realiza. O trabalhador do capitalismo é substituído pelo “empresário de si” do neoliberalismo. Já não há Outro explorador, mas sim a auto exploração em nome da maximização do lucro próprio. Uma exploração voluntária que disfarça de liberdade a violência que se exerce contra si mesmo. O imperativo de “deves” é substituído pelo de “podes”, caracterizado pela ausência de limites. Com o neoliberalismo e o imperativo da performance, o sujeito é redirecionado para uma relação ainda mais original do que a do mais-de-gozar enquadrado na fantasia. É uma relação de gozo que escapa à dialética edipiana e ao paradigma da permissão / proibição.

O surgimento do discurso capitalista implica uma mudança no discurso do mestre onde o gozo positivo da iteração viciante, descrito por Miller em seu curso El uno-totalmente-solo, deixa de ser o gozo proibido e fora da regra para ser representado por diversos significantes que lhe permitam ser reconhecido, podendo ocupar o lugar de agente dominante do discurso. Desempenho, métrica, sucesso, maximização, desenvolvimento, eficácia, bem-estar, felicidade, liberdade, empreendedorismo, auto empreendedor, autodesenvolvimento, todos são significantes que aludem a um gozo ilimitado que não está mais fora da norma nem proibido, e pode até ser incluído como uma exigência. Como assinalou M. H. Brousse, as mudanças de discurso ocorrem quando um gozo proibido se torna um gozo habilitado.

Retomando a pergunta, como impacta o modo de gozo do vínculo social neoliberal na função do amor? Como amar em tempos de neoliberalismo, quando a castração não é o único regime de tratamento de gozo?

A prática analítica e a escuta dos analisandos em torno do amor, permitem mencionar algumas peculiaridades da função do amor como suplência nesta era neoliberal.

Em primeiro lugar, o amor tende a prescindir da referência ao duradouro, ao eterno e à transcendência para privilegiar a contingência e o encontro. O amor como invenção e mediação ante a ausência de relacionamento tem preferência pelo encontro contingente como forma de vínculo. Separado da tradição e do ideal, refere-se antes a um regime dúctil e flexível

Em segundo lugar, os encontros amorosos da atualidade se apresentam e pretendem como respeitosos do autismo do gozo. O gozo da ordem do Um não se reprime nem se força a se submeter ao Outro. Sem estar isento de conflitos, espera-se, com certa idealização, o respeito pela iteração em cada parceiro. Os conflitos e tensões às vezes fazem reviver o edípico.

Em terceiro lugar, se agrega a estas duas dimensões uma especificidade instrumental do amor, uma ferramenta “para” o acesso a uma série de possibilidades de satisfação com um parceiro que são permanentemente calibradas e cotejadas para se ajustar a parâmetros vinculados com as duas situações descritas antes. Esse caráter confere ao amor uma tonalidade sintomática, fazendo possível um laço que acolhe a singularidade, sempre e quando se possa evitar a reentrada do supereu sob a forma de novos ideais e valores próprios das ideologias progressistas contemporâneas que atravessam os laços na atualidade.

Sob esse horizonte de época, o analista terá que calibrar sua posição, não só longe do ideal, mas também cada vez mais perto dos modos de gozo e dos arranjos singulares.

 

Tradução: Luciano Matos

Notas
1 Lacan, J, Hablo a las paredes, Paidós, Buenos Aires, 2012, p. 105-106.
Bibliografía:
Chang, H-J, Una breve historia del capitalismo, rhm- Flash Ensayo, Madrid, 2017.
Escalante, F, Historia mínima del neoliberalismo, Turner ediciones, Madrid, 2015.
Fisher, M, Realismo capitalista. ¿No hay alternativa?, Caja Negra, Buenos Aires, 2019.
Gárate, M, La revolución capitalista en Chile (1973-2003), Ediciones Universidad Alberto Hurtado, Santiago de Chile, 2010.
Han, B-C, Psicopolítica, Herder, Buenos Aires, 2014.
Han, B-C, Topología de la violencia, Herder, Barcelona, 2016.
Han, B-C, La sociedad del cansancio, Herder, Barcelona, 2017.
Lacan, J, Seminario XVII. El reverso del psicoanálisis, Paidós, Buenos Aires, 1992.
Lacan, J, Hablo a las paredes, Paidós, Buenos Aires, 2012.
Laurent, E, El reverso de la biopolítica, Grama ediciones, Buenos Aires, 2016.
Miller, J-A., “Breve introducción al más allá del Edipo”, Del Edipo a la sexuación, Paidós, Buenos Aires, 2001, p. 17-22.
Miller, J-A, Sutilezas analíticas, Paidós, Buenos Aires, 2011.
Miller, J-A, L’uno-tutto-solo, Astrolabio, Roma, 2018.