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A partir do umbral


lacan21 - 10 de abril de 2017 - 0 comments

Alejandra Eidelberg (EOL-AMP)

A citação

“Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si.” (Lacan 1998: 11)

Assim conclui Lacan a “Abertura dessa coletânea” redigida em 1966 para cumprir a função de prólogo ou prefácio autoral a seus Escritos.

O prólogo é um elemento paratextual definido por Gerard Genette (2001) como um umbral que oferece a possibilidade de entrar em um livro ou de abandoná-lo. Zona sem limite preciso entre o dentro e o fora se constitui como lugar de uma estratégia pragmática para incidir sobre o leitor e sua leitura. Uma das fontes de Genette é Jorge Luis Borges (2007), quem supôs dar ao prólogo uma autonomia com a qual o distinguiu da mera introdução, emancipando-o como gênero discursivo capaz de expandir a obra prologada.

Tal é o caso desta abertura lacaniana: uma escritura com ressonâncias de abertura musical, que se integra aos Escritos, desde uma zona de borda capaz de se fazer centro e cuja particularidade é que nela o autor escreve sua própria leitura dos textos que escreveu e compilou. Trata-se, sem dúvida, de uma política de leitura que não está aberta a todos os sentidos, como tampouco está a intervenção analítica na experiência de uma análise. Esta é uma das razões pelas quais a abordagem dos textos lacanianos é uma das três pernas do tripé da formação de um analista.

Na citação escolhida, Lacan condensa vários dos pontos apresentados ao longo de sua abertura. Primeiramente, localiza seus escritos como marcos no percurso de seu ensino oral; resíduos ou detritos do mesmo, dirá alguns anos mais tarde (1998). Em segundo lugar, resgata seu estilo, que não é o do homem Lacan (guiado por Buffon), senão o daqueles a quem seus textos se dirigem: ao Outro de quem recebe sua mensagem em forma invertida. Mas, como já passa do ano de 1966, um terceiro viés de leitura se impõe: do itinerário e da mensagem de seus escritos, Lacan se desloca para uma consequência dos mesmos com a que quer comprometer o leitor e que está relacionada com a topologia do laço. Nela, um significante se fecha sobre si mesmo, altera a cadeia e bloqueia seu efeito de significação; tornado letra que se inscreve como marca no corpo, bordeia um furo no qual o objeto a se produz em queda, como causa e sustentação do sujeito.

Este objeto é o que responde pelo estilo dos Escritos e, ainda que se eleve ao final de sua compilação, Lacan o situa retroativamente no umbral desde que convoca o “novo leitor” – que ele mesmo foi – no final dos anos 60: dupla localização temporal do objeto, no início e no final, que tem seu correlato na experiência analítica.

Um leitor que coloque algo de si.

O marco deste deslocamento já não é o da epopeia heroica, senão o de sua paródia irrisória. Este é o ponto no qual Lacan quer conduzir o novo leitor de seus textos: a uma posição na qual deverá colocar algo seu, deverá por algo de si que não dependa desse Outro – tesouro heroico de significantes – que tenha facilitado seu romance familiar. Este Lacan barthesiano talvez aspire que seus Escritos não sejam meros textos legíveis, senão escrevíveis; quer dizer, textos com os quais cada leitor funde sua escritura a cada vez, com seu próprio estilo de leitura, seguindo o exemplo lacaniano (sempre mais do lado do mock heroic), mas sem imitá-lo (1988a).   

Lacan quer facilitar as coisas a quem deverá aprender a ler seus Escritos desta maneira desalfabestializada (2003): maneira homóloga àquela com a que o analisante aprenderá a ler seu próprio inconsciente, sempre estruturado como uma linguagem, mas em meio ao qual pode irromper seu escrito (2009).

Sugere então começar com seu seminário sobre o conto de Edgar A. Poe “A carta roubada”, texto de 1956 que abre a sequência “a despeito de sua diacronia” (1998:10), em uma operação que também altera a cadeia linear do tempo. Os Escritos começam assim, com um escrito que se refere ao escrito: posta em abismo donde Lacan enuncia que a letra não é o significante, senão o que cai dele quando por sua pirueta acrobática de laço, “perdeu sua significação” (1998a: 43) .

A este novo leitor tocará, por um lado, dar à carta em questão sua destinação, que não deve confundir-se com seus endereçados; e por outro, deverá relacionar esta destinação com a verdade da mensagem de Poe que Lacan afirma ter decifrado.

O destino e a verdade da carta1 de Poe

Ainda que significante, a carta tem um endereçado: o Outro a quem vai dirigida e de quem retorna sua própria mensagem na forma invertida, com efeitos de significação. Mas sua destinação é outra, é tornar objeto sem conteúdo, insignificante, dejeto amassado, litter, lixo. A sintaxe da combinatória simbólica que determina o sujeito não é sem este objeto dejeto: a carta-letra que é mera marca, traço, escritura singular de um gozo sempre irrisório com respeito ao que é impossível de nomear.

Segundo Lacan, esta destinação de escritura da letra é sinônimo de sua destinação de publixação2 , seguramente para que fique claro que não terá nenhum lugar no tesouro significante do Outro (rico em semblantes, sentidos e saberes vários); muito pelo contrário: assinala sua imperfeição. Mas será lixo reciclável se sabe lê-lo (Miller, 2015), assim como o núcleo duro do gozo do sintoma em sofrimento – que nenhuma palavra apazigua – pode ter um destino sublimatório se souber lê-lo como letra.

Lacan, leitor de Poe, decifra que a verdade da mensagem deste homem de letras não tem nada a ver com a mensagem escamoteada da epístola de sua ficção, senão com seu destino bizarro, singular, díspar, estranho, odd, papel insignificante que faz peripécias prescindindo todo o tempo de seu conteúdo.

Poe pretende enganar seus leitores, assim como o Ministro os buscadores da epístola. Mas o primeiro fracassa com Lacan e o segundo, com Dupin. Em ambos os casos, o “truque”, segundo Lacan (1998a: 45) é fingir que se finge. Quer dizer, usar a verdade para enganar, para mentir, mostrá-la para ocultá-la. Lacan se refere neste ponto à conhecida história do encontro entre dois judeus, onde um disse ao outro (1998a: 22) “por que mentes para mim, dizendo-me que vais a Cracóvia, para que eu creia que estás indo a Lemberg, quando, na realidade, é a Cracóvia que vais?” Borges também se refere a ela, mas ainda dá uma chave possível para entender a arraigada tradição da psicanálise na Argentina, em seguida, considera que este diálogo tem a mesma lógica que a dos jogadores de truco, tradicional jogo de naipes rio-platense. Disse Borges (2007a: 169): “Uma potenciação do engano ocorre no truco esse jogador rabugento que atirou suas cartas sobre a mesa, pode esconder um bom jogo (astúcia elementar) ou talvez esteja nos mentindo com a verdade para que desacreditemos nela (astúcia ao quadrado).”

A ficção ao quadrado responde à capacidade simbólica do ser humano ligada à palavra, capaz de produzir um real que por sua vez escapa a todo cálculo e que a imbecilidade do realismo imaginário insiste em acomodar na medida de seu leito de Procusto, anulando todo paradoxo. É o que ocorre à polícia, que não pode ler o que está oculto porque, estranhamente, está à vista, e ela só busca nos esconderijos habituais. O que poderia ocorrer aos leitores que só confiam no sentido profundo e infinito dos textos, inclusive no do inconsciente, por ignorar que suas revelações só se dão na superfície e algumas delas, as mais fecundas, nos confins da linguagem, onde o sentido encalha. Se procede como a polícia, o analista irremediavelmente se afasta das condições matemáticas e poéticas imprescindíveis para ler no que se ouve da materialidade do significante.

Animar-se a afirmar que Poe finge que finge equivale a considerar a epístola a-temática de seu conto, não como uma metáfora da letra, mas como a letra mesma; ou, sequer como uma mensagem, não de, mas sobre a carta-letra; mensagem que Poe não disse tal qual, mas que por isso mesmo o confessa “ainda mais rigoroso” (Lacan 2003a: 17). Poder-se-ia pensar inclusive que, para a leitura lacaniana, o conto não tem nenhuma importância por seu conteúdo ficcional. O que o interesse do analista lê é que Poe finge uma ficção para velar a verdade da letra, para enganá-lo sobre esta verdade. Mas não o logra e Lacan bem que poderia interrogar Poe (sempre e quando não for seu analisante): “porque me fala de uma carta que não tem mensagem para que eu acredite que esta está oculta, se na realidade não tem mensagem? Está mentindo, Poe?”

Uma volta a mais sobre o novo leitor: o familiar estranho

Em 1966, Lacan foi, como se diz, leitor de seus próprios Escritos. Não estava só, acompanhavam-no vários leitores. Mas na modalidade de leitura de um deles, Jacques-Alain Miller, encontrou a encarnação de algo novo e nela apostou fortemente, com a intenção de expandi-la.

Ele tinha, sem dúvida, seus motivos e vários deles os deduziu e explicou o próprio Miller (1996) na ocasião de uma celebração anterior, para os 30 anos da publicação dos Escritos. Tentava assim responder-se como foi que Lacan o confiou a confecção de seu sumário razoável ao jovem de 22 anos que ele era na época. Alguns destes motivos podem relacionar-se com certas questões desenvolvidas no presente trabalho.

Primeiramente, Miller descarta – não sem ironia – que tenha havido alguma relação de parentesco que guiaria Lacan, pois ainda não era seu sogro; ele nem sequer havia pedido a mão de sua filha Judith. Conclusão: não se tratou de um assunto de família, contrariamente ao que alguns, seguramente, podiam e queriam pensar.

A libido em jogo não era a família, era inerente à transmissão de um ensino por parte de Lacan e ao que Miller punha de si diante dela: um plus. Mas este plus não era o do esforço voluntário e entristecido que outros padeciam face ao estilo do mestre, ao contrário, era um fecundo plus de gozo; Lacan pôde dar-se conta, disse Miller, como ele gozava de seus Escritos.

Em seguida ele agrega outro detalhe que, contudo, deve ser lido em todo seu peso. Foi ele quem sugeriu que o seminário sobre o conto de Poe fora o primeiro texto da sequência, o Um dos escritos, como destaca Jorge Bekerman (1999). Trata-se de um detalhe de peso por duas razões. Em primeiro lugar, porque, com esta sugestão que Lacan aceitou, fica alterada e estranha a cronologia esperada e familiar dos Escritos. Sua intervenção leitora é borgeana, menardista, para maior precisão (2007b), pois introduz um anacronismo deliberado que tem efeitos de reescritura: o mesmo texto, mas outro. O seminário sobre a carta, localizado no início da série, não é o mesmo que o seminário sobre a carta que poderia ter ficado prolixamente localizado depois dos primeiros textos dos anos 50. Em segundo lugar, esta sugestão de troca de ordem também tem peso porque se trata de uma operação com a que Miller decide o destino de um escrito: o de iniciar uma série. Este gesto paratextual se duplica nos anos 70, quando disse em seu prólogo nos Outros Escritos: “[…] por muitas razões, ‘Lituraterra’ pareceu-nos predestinado3 a ocupar aqui o lugar concedido nos Escritos ao ‘Seminário sobre A carta roubada’” (Miller 2003b: 13)

Em duas oportunidades, pelo menos, a nova leitura milleriana assinala o destino de causa da prática dos textos nos quais o tema da letra e o escrito têm relevância. “Por muitas razões”, disse Miller sobre sua decisão com “Lituraterra”, mas não as expõe: ele também deixa opacidades ao elucidar. Apesar de sua vocação pela transparência “uma condenação de destino a ser claro” para complementar a suposta obscuridade de Lacan (2003) –  nem sempre consegue, ou não totalmente.

Talvez a melhor definição da intervenção milleriana sobre o ensino de Lacan possa ser dada pelo poeta Fernando Pessoa (2006:381), quando sustenta que “a arte que dá ao obscuro uma expressão lúcida não a torna clara, e sim torna clara a obscuridade”. Sempre estranha esta familiaridade entre os opostos de um oxímoron.

Tradução: Leonardo Scofield
Bibliografía
Bekerman, Jorge y Amster, Pablo (1999): La carta robada y su introducción. En torno al Escrito Uno de Jacques Lacan, Buenos Aires, Russell.
Borges, Jorge L. (2007): “Prólogo de prólogos”, en “Prólogos”, Obras completas, Buenos Aires, Emecé, tomo IV.
——— (2007a): “El truco”, en “Evaristo Carriego”, op.cit., tomo I.
——— (2007b): “Pierre Menard, autor del Quijote”, en “Ficciones”, op.cit., tomo I.
Genette, Gerard (2001): Umbrales, México, Siglo XXI.
Lacan, J. (1998[1975]). “Conferência em Genebra sobre o sintoma”. In Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, (23). São Paulo: Edições Eolia,
——— (1988a): “La tercera”, en Intervenciones y textos 2, Buenos Aires, Manantial.
——— (1998): “Abertura desta coletânea”, in: Escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1998
——— (1998a): “O seminário sobre ‘A carta roubada’”, In: Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar. p.43
——— (2009): O Seminário, livro 18, De um discurso que não fosse semblante, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
——— (2003), “Posfácio ao Seminário 11”, In: Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
——— (2003 a), “Lituraterra” In: Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Miller, Jacques-Alain (1996): “A 30 años de la publicación de los Escritos”, en El
Caldero de la Escuela, Nº 47, publicación de la EOL.
———- (2015), “Ler um síntoma”, In: Opção Lacaniana, nº 70, São Paulo, Eolia
———- (2003b), “Prólogo”, In: Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
Pessoa, Fernando (2006): Escritos sobre génio e loucura, Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, Lisboa.
1 Tanto na língua inglesa de Poe como  na francesa de Lacan, lettter y lettre oferecen a possibilidade de jogar com o equívoco entre carta/epístola e letra, possibilidade inexistente na língua portuguesa.
2 Poubelication traduzido para o português como publixação é o trocadilho formado pelos termos poubelle (lata de lixo, lixeira) e publication (pllblicação).
3 Sublinhado pelo autor.