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Editorial Lacan XXI nº3


lacan21 - 10 de abril de 2017 - 0 comments

Miquel Bassols
Presidente da Associação Mundial de Psicanálise

Lisa Erbin. EOL. AMP. Técnica Mixta. Óleo y collage.

A família nos fala. Então nada melhor que fazer da família o tema do próximo ENAPOL, o oitavo dos Encontros organizado pela Federação Americana de Psicanálise de Orientação Lacaniana (FAPOL).  A família, com seus assuntos e seus segredos, seus enredos e seus sintomas, seus encontros e desencontros, e também com suas novas configurações, segue, com efeito, falando-nos do mal-estar do sujeito contemporâneo. Mas o psicanalista não escuta nem trata a família em seu conjunto. Não há psicanálise possível da família senão só de cada um de seus membros tomado em sua singularidade, um por um. Convém entender então esta afirmação –a família nos fala – desde a hipótese do inconsciente: somos falados pela família, um por um, sem sabê-lo. Cada um é falado pelos oráculos familiares que se foram escrevendo no texto de sua vida em forma de desejos, de demandas, de imperativos mais ou menos impossíveis de cumprir, mas sempre com um enigma a ser decifrado. Cada um transmite, também sem sabê-lo, este enigma indecifrado aos que a genealogia familiar situa como seus descendentes. É frequente que estes descendentes, como o sujeito fez para seus antepassados, lhe devolvam este enigma em forma de sintoma, também a decifrar. A criança, dirá Lacan, é o sintoma do casal parental. E então, cada um encontra desde o familiar aquilo que é mais estranho, o mais diferente, o mais Outro em si mesmo. Freud o qualificou com um termo, das Unheimliche, que não tem tradução fácil: o sinistro, a inquietante estranheza, o que de tão familiar acaba fazendo-se estrangeiro.

A família, como transmissora do texto enigmático que se escreve na vida de cada sujeito, foi um dos primeiros temas tratados por Jacques Lacan em sua passagem pela psicanálise. Seu famoso texto publicado em 1938 no volume VII de La Enciclopédie Française continua sendo hoje de notável atualidade. Merece uma leitura atenta mais além dos preconceitos que atravessam, hoje, muitas das políticas dedicadas ao cuidado da família. Digamos qual é a raiz última destes preconceitos, enunciada por Lacan muitos anos depois com seu aforismo: “não há relação sexual”. A família se funda de fato na impossibilidade de estabelecer uma relação entre os sexos, seja sob um ideal de harmonia ou de complementariedade entre eles. Lacan terminava aquele texto antecipador com uma observação que continua sendo crucial para entender o declive atual da figura do pai e a aparição da feminização como seu reverso: “As origens de nossa cultura estão excessivamente ligadas ao que chamaríamos de bom grado a aventura da família paternalista como para que não imponha, em todas as formas através das quais enriqueceu o desenvolvimento psíquico, um predomínio do princípio masculino, em relação com o qual o alcance moral conferido ao término de virilidade permite calibrar sua parcialidade. É evidente que esta preferência tem um reverso fundamental, primordialmente a ocultação do princípio feminino sob o ideal masculino.”(1) Entenda-se este “princípio feminino” precisamente como o princípio daquela inquietante estranheza que habita no mais familiar e que tanto as diferentes formas de vida cultural como os preconceitos ligados a elas tenham reduzido a figura da mãe. O que há de gozo feminino no desejo da mãe, é a alteralidade que não sabe a si mesma e que se encontra no coração do mais familiar.

O leitor encontrará na abertura deste terceiro número de Lacan XXI o texto de uma precisa exposição de Jacques-Alain Miller para tornar mais compreensível esta torção sutil: a criança entre a mulher e a mãe. Estranho lugar que cada ser falante deve habitar para saber-se habitado por ele…se decide deixar-se ensinar pelo seu próprio inconsciente.

A atenta exploração deste segredo de família valerá também para decifrar as razões das violências e paixões que a razão não conhece, para entender por quê a chamada adolescência é um sintoma da aparição no corpo da estranheza do gozo sexual, e seguramente também para investigar por quê nos entregamos hoje tão placidamente à fascinação do mundo virtual. São três temas que o leitor encontrará abordados nestas páginas para continuar sua pesquisa.

O tecido institucional em que se alinhavam todas estas pesquisas tem seu suporte na FAPOL  e seu engate com a Associação Mundial de Psicanálise. Os distintos dispositivos postos em marcha e desenvolvidos agora com especial vigor pela sua presidente, nossa colega Flory Kruger, tem um lugar eminente neste número de Lacan XXI. São a melhor mostra de um work in progress que prossegue nas três Escolas americanas que a FAPOL federa: a EOL na Argentina, a EBP no Brasil, a NEL nos distintos países da ampla geografia latinoamericana. A Escola Una – é assim como chamamos o vetor que atravessa os laços de familiaridade entre as Escolas – se congratula por isso.

LACAN, Jacques. A família. Editorial Argonauta, Barcelona 1979,p.141.

Barcelona, fevereiro de 2017.

Tradução: Maria Cristina Vignoli