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Incidências da psicanálise no porvir: renovar a aposta


lacan21 - 26 de maio de 2020 - 0 comments

Marcelo Veras - EBP/AMP - Fotografia. Série Tempo em preto e branco.

Marcelo Veras – EBP/AMP – Fotografia. Série Tempo em preto e branco.

Ricardo Seldes – EOL – AMP

Kierkegaard se perguntou em suas “Migalhas filosóficas”, se era necessário o futuro. E se respondeu pela negativa: nenhum devir é necessário, nem antes que se torne, porque então não poderia tornar-se, nem depois que se tornou, já que então não haveria se tornado. Em uma seguinte reflexão, situaremos uma pequena diferença. Aí onde ele escreve a questão da liberdade, nós situaremos a contingência. Afirmamos que todo devir acontece por contingência e não por necessidade; nada do que se torna, se torna por uma razão, é a pergunta pela causa. Toda causa culmina em uma causa contingentemente atuante. Somente a ilusão de causas intermediárias faz parecer que o tornar-se é necessário; sua verdade consiste em que, uma vez tornadas, remetem a uma causa contingentemente atuante… O cúmulo do eterno seria não ter história. Lalíngua que toca os corpos, os traumatiza, produz o gozo mais além do sentido. E é por isso que os falantes gozam também de dar sentido ao sem sentido.

A história da psicanálise começa no momento em que Freud formula a posição que põe em marcha a Associação Internacional, ao transferir o que considerava seu saber acerca do real da Psicanálise, a uma instância dotada de uma enunciação coletiva. É o que J-A. Miller captou como a complicação inicial porque, com o transcorrer dos anos, se tem demostrado que não há nenhuma teoria psicanalítica que se estabeleça de forma duradoura como a ortodoxia analítica.

Lacan fundou sua Escola em 1964; para ele, a psicanálise já estava por toda parte. Não deixou de reconhecer o êxito da IPA como invenção de Freud para fazê-la existir em nosso mundo, mesmo que tenha denunciado o divórcio entre a psicanálise e os analistas: para ele, os psicanalistas estavam em outra parte. Nomeou esta divisão entre a psicanálise e os psicanalistas como conformismo da mirada, barbarismo da doutrina, regressão rematada a um psicologismo puro e simples, tudo isso compensado pela promoção de um clericato fácil de caricaturar. Esta foi uma feroz crítica aos praticantes da obediência anglófona que tomavam os princípios do American way of life como bússola e os critérios de identificação como reveladores do fim da análise. A Internacional havia suportado a queda da ortodoxia freudiana – anafreudiana – e pôde conviver com os “hereges” kleinianos e sua prática estendida.

O “problema Lacan” em 1963 não se sustentava pelo questionamento de seus ensinos, que constituíam para eles, um perigo transferencial, mas o maior embargo para a Internacional era sua prática didática desregulada e, além do mais, numerosa. O avesso da crítica de Lacan foi sua antífrase do “trouxemos a peste” da chegada de Freud aos Estados Unidos: a enfermidade da psicanálise se agachou em Nova York durante a época Hartmann-post Hartmann e logrou manter a estrutura uniforme e unitária da IPA.

Freud havia tido em Putman, Frink e Brill, talvez em seus sintomas, o anseio de um futuro propício, antes de captar que os americanos iam querer uni-lo demasiado rapidamente com a psiquiatria e da pior maneira: os psiquiatras se apropriaram da prática terapêutica e, segundo as palavras de Freud, com pouco interesse pelos problemas científicos e seu significado cultural. A oposição à psicanálise não foi a partir da psiquiatria, mas dos psiquiatras norte-americanos. Capitulou a psicanálise nos Estados Unidos?

Para Lacan, o fato de “render-se” foi a primeira incidência da psicanálise no devir do movimento analítico. Mas, ele tinha sua resposta: Sigo, então, a regra do jogo, como fez Freud, e não tenho que me surpreender pelo fracasso de meus esforços para pôr fim à detenção do pensamento psicanalítico, pronunciou no ano 1967, na mesma época em que fez sua proposta do passe na Escola, para repensar a definição do psicanalista. Quando a psicanálise tiver rendido suas armas diante dos impasses crescentes da civilização… e é de destacar que o dá como um fato confirmado, que alguém tomará de novo, de maneira diferente, as observações de meu trabalho…de meus Escritos. Perguntamo-nos com J-A. Miller: poderia ser que o juízo crítico de Lacan não fosse tanto uma crítica à psicanálise moderna, mas uma antecipação do destino da psicanálise? É uma interpretação muito decidida entender que a suposta capitulação da psicanálise nos Estados Unidos estaria pressagiando o desaparecimento da disciplina. Obviamente, o avanço das TCC e das suposições acerca de que conhecer o funcionamento cerebral permitirá, por exemplo, neutralizar as paixões, vai de mãos dadas com as contabilidades cruzadas e com o cálculo de ganhos que realizam uma ética que a ética da psicanálise, ainda, tem a oportunidade de se opor.

Quanto à mesma psicanálise, foi em 1988, em Barcelona, que compreendemos que depois do degelo da história do movimento analítico, começávamos um novo tecido, captamos porque à força da IPA, não se podia lhe opor, uma especularmente igual. A AMP wants to be um só grupo, com compacidade e numeroso; esse é nosso target ainda hoje. Já conhecemos o destino que tem nesta sociedade, construir gigantes gêmeos para estabilizar o monopólio e, talvez, para significar o fim de toda competência e de toda referência original. A mundialização, diria o filósofo social, a do um totalizante, aponta à recolonização liberal pelo mercado e a dominação cultural. Todos sofremos por esta situação.

Por que, então, não tentar atuar sobre suas causas?  Que papel nos toca, a nós psicanalistas de orientação lacaniana? Os fatos têm demonstrado que o próprio do lacanismo tem sido sua múltipla fragmentação, sua difícil reunião. A partir da experiência com nossa Psicanálise, temos a ideia de que, às contingências, é preciso dar-lhes seu lugar, admiti-las, organizá-las. E, a partir daí, captamos duas questões éticas essenciais: a reconquista do desejo e a responsabilidade de não ceder, a não resignação. A posição de reconquista, objetivo essencial de toda Escola da AMP, é incompatível à resignação. São os fatos da experiência lacaniana que dão a orientação política de cada momento. E se lutamos por fazer perdurar a psicanálise, nós psicanalistas não aspiramos à eternidade. Chega a entrar em certa santidade, ao reconhecer e pôr a trabalho o sinthoma de cada um, assim como sua modalidade de gozo, enquanto possibilidade de testemunho e causa do desejo do Outro, ainda quando esse Outro não exista. Dizer “um a um” não pode ser um slogan vazio. É nossa tentativa lacaniana de renovar a clínica, de enfrentar o real, onde e como se possa.

Tradução: Mª Cristina Maia Fernandes

NOTAS:
1.Lacan, J., Ato de fundação, Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 243.
2.Lacan, J., Roma ‘53 a Roma ‘67. El psicoanálisis: razón de un fracaso. Otros escritos, Paidós, Buenos Aires, 2012.