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O destino dos guardachuvas


lacan21 - 30 de dezembro de 2021 - 0 comments

Marcela F. Mas – EOL/AMP

Ainda não consigo me explicar como foi que decidi chegar até aqui. A escuridão da noite se faz mais espessa no cais. Continuo avançando às cegas e repentinamente me lembro do poema de Alfonsina Storni: “¡Água, água, água! Isso vou gritando pelas ruas e parques”.

A escuridão da noite, a imensidão do mar e a lembrança de uma suicida…Definitivamente não me parecem uma boa combinação. É melhor dar meia volta com cuidado. Está tudo molhado e não quero fazer nenhuma homenagem a ninguém.

Caminho agora pelas ruelas da costaneira.

O vento teimosamente torna difícil para mim andar.

O frio me penetra até os ossos. Adoro essa expressão, me parece magnífica, ampulosa, quase andaluza. Há outras mais obscenas, mas esta noite tenho me proposto manter a elegância ainda que seja somente comigo mesma.

Onde foi que estava? Esse costume de falar comigo sozinha… ¡Ah, sim! a poesia, sua tragédia e a escuridão. Verdadeiramente deveria dizer, meu medo à escuridão.

Um ruído por perto me sobressalta. Olho sem compreender e percebo que um carro freou muito perto. O cara do carro faz gestos com os braços, quase teatrais, e grita como louco.

Uns segundos mais tarde me dou conta do evidente, está me xingando porque cruzei sem olhar.

Lhe agradeço as lembranças para minha maezinha, sorrio e continuo andando em direção ao centro.

Os edifícios freiam um pouco o vento de “A Feliz”. Ninguém teve a ocurrencia de pensar que é um apelido pretencioso para uma cidade com a água que congela você no meio do mês de Janeiro?

Sim, para mim a felicidade anda de mãos dadas com a temperatura da água. Por algum motivo a alegria é brasileira e o tango argento, deveria ser feito um estudo mais sério, não é? Não, melhor não, mas é assim ainda que me falem que não é certo.

Evito a rua de pedestres, sempre lotada de gente chata em volta de algum show de rua. Fica me parecendo que o escuto me acusando de não apoiar os artistas, mas espanto sua lembrança com um simples movimento da mão esquerda.

Deveria o reconhecer, me chateo muito facilmente, ainda mais esta noite.

Necessito me distrair com alguma coisa. Sim, o necessito. Não, a ele não, digamos que um pouco sim. E se telefono? É muito tarde? Uma chamada como por equívoco é um truque velho, mas eficaz.

Se algo faltava nesta noite, digna de uma feroz amnesia, era esta chuva. Tento me guarnecer embaixo de um telhadinho junto a outros quatro verananistas.

Detesto me considerar assim, eu não sou uma veranista, sou uma refugiada sem pertencimento, uma mulher chata que trata de escapar de suas lembranças melancólicas. Uma mulher que estragou seu destino e acabou em uma cidade com um apelido presunçoso.

Feliz era eu antes, assim gostava de acreditar, mas todos sabemos que também é mentira.

Gosto de exagerar até nisso. Gosto de me queixar com exageração, quere-lo também assim, como se não houvesse nada mais no mundo.

Oh! Quelle intensité Teté, Giordano me diria além de me facer movimentar a cabeça enquanto diz nomes de cidades às quais não poderia ter ido este verão. Esta absurdidade me faz sorrir ainda que não se perceba.

“Vamos por distancia” me disse. É curioso que lembre isso quase pegada a estes quatro. Os escuto rir ao constatar que não lhes restou um centímetro seco.

Tenho inveja deles com toda a alma. Sim, sou um completo catálogo de virtudes.

Um deles faz  um gesto com a intencão de armar uma conversa exogámica, olho para  a esquina e me vou indo lentamente, não tem sentido correr.

O hotel fica a uns tres quarteirões. A ilusão de um banho quente dissipa a nuvem negra da queixa, que começa a me fastidiar também a mim. Por um instante o entendo.

Após um ritual de expiação, ou seja, de tomar um banho, olho o telefone e encontro a única foto que não apaguei.

O sol estreitou seus olhos, mas não diminuiu a intensidade de seu olhar. Penso nas vezes em que ele olhou para mim do jeito que eu me lembro dele agora.

Sem tristeza ou algum sentimento similar, penso que nosso encontro teve o destino dos guarda-chuvas, algo condenado ao esquecimento, salvo em noites como ésta, em que chove.