Clara María Holguín – NEL-AMP
Se “o despertar é impossível”[1], tal como Lacan demonstra em sua censura ao sonho da eternidade, segundo o qual se imagina despertar, a verificação desse impasse revela um “impossível” para a psicanálise, que lança questões, tanto para a prática quanto para a posição do analista.
Como conceber a prática a partir desse impossível? Podemos nos inspirar nele? Quais são as consequências dessa marca?
Uma prática contra a natureza
A desestruturação do símbolo introduzida por Lacan em seu último ensino, elaborada nos seminários L’insu que sait de l’une bévue e O momento de concluir, faz vacilar todos os semblantes e conduz à consideração de uma antinomia interna na psicanálise entre perspectiva e prática.
Ao mesmo tempo em que a perspectiva é o real – enquanto separado do semblante –, a prática analítica opera com o sentido: “é de algum modo aquilo que poderíamos dizer como sendo da ordem da afetação, ou seja, da ordem do semblante. Isso significa que se opera com a conexão entre um significante e outro, seja pela via da associação livre, seja pela da interpretação”[2]. Qual a saída diante dessa antinomia? É possível capturar um pouco de real pela via do simbólico, quando a noção de estrutura muda radicalmente e a psicanálise chega a ser considerada uma prática do blá-blá-blá?
Na medida em que Lacan constata que nem a via do simbólico no real – o realmente simbólico – nem a via do real no simbólico – o simbolicamente real – podem dar conta do real esvaziado de sentido – já que no primeiro caso revela-se que o simbólico é uma mentira em relação ao real e que no segundo, apesar de que se consiga transportar um sentido ao real através da angústia e/ou através do objeto a, que não mentem, evidencia-se que não se deixa de dar voltas –, Lacan propõe uma prática em que já não se trata do imaginário como véu que é preciso atravessar para alcançar o real, mas da articulação entre o imaginário e o real, como nos mostra o nó, onde “se imagina o real”. É aí que o despertar pode ser considerado um fim – apesar de ser impossível – para se opor ao trabalho do inconsciente e tentar introduzir algo que vá além dele. E faz isso pela via do dizer.
Dizer algo tem a ver com o tempo e com o corte[3]. “Dizer retira ao blá-blá-blá, sua eternidade e, num instante, introduz aquilo que se apresenta tão prontamente quanto se fala: o presente. Em outras palavras, esse dizer é um ato que vai contra o sonho eterno do inconsciente e do blá-blá-blá”[4], para introduzir o instante e o presente, os quais nos colocam diante do encontro com o Real contingente.
O corte produz uma desconexão entre um significante e outro. Ao passo que contraria a associação livre e a interpretação, ele é o caminho para encontrar o Um, que é o resíduo que serve como recurso no acesso ao real e constitui o modelo do ato analítico nesse último ensino, ao passo que “se trata de elaborar um ato que não seja débil mental e que não passaria pelo pensamento”[5]. É uma aspiração de Lacan, “elevar a psicanálise à dignidade da cirurgia, elevar a debilidade psicanalítica à segurança soberana do gesto cirúrgico: cortar”[6].
Essa prática que, como diz Miller, é contra a natureza, justamente na medida em que contradiz a via do discurso supõe um Lacan realista, no sentido do real, do qual não se sabe. Para que no aproximemos dela, será necessário articular pelo menos três pontos: primeiro, um inconsciente em que há uma escritura – bévue –; segundo, um uso diferente da palavra, que tem a ver com “aquilo que se modula na voz”[7]; e, terceiro, uma dimensão do tempo associada à topologia, na qual, mais que ao tempo linear – até então considerado como via romana –, aponta-se para um tempo do qual não se sai.
Vocação do analista: inspirar o desejo duro de despertar
Um tratamento marcado pela impossibilidade tem o selo do real, não cessa de não se escrever. Como colocar em ato, então, a perspectiva da psicanálise na prática? Como se opor ao pendor dormitivo do discurso?
Segundo Miller, trata-se de inspirar ao analisando alguma impaciência – a ele que só demanda permanecer ainda um pouco mais de tempo como […] paciente […] Inspirar-lhe o duro desejo de despertar, que nada tem de natural, que é até contra a natureza e, em especial, contra a natureza da prática da psicanálise.
E acrescenta: “o desejo de despertar […] é o desejo do analista na medida em que ele não se identifica com o sujeito suposto saber […] que ele ateste com sua presença o encontro com o real”[8].
Inspirar um desejo de despertar não é o mesmo que despertar. Está longe de ser um ideal e um imperativo. Isso, antes, tem como objeto, causar um desejo de saber sobre o real impossível, para que, para além da revelação, se transforme a paixão pela verdade em paixão pelo significante: “talvez seja no nível do Um, através da identificação com o sinthome, onde o despertar poderia, por assim dizer, cessar de não se inscrever”[9]. A partir desse impossível, algo pode – apesar de tudo – encontrar uma nova escritura.
Pois bem, é possível inspirar esse desejo de despertar sempre e quando o analista, como diz Miller, testemunhe do encontro com o real pela via do semblante. Isso implica que o analista não esteja identificado ao sujeito suposto saber, onde apenas se é efeito de sentido[10], e, consequentemente, também supõe, como diz Marie-Hélène Brousse, “esvaziar todo o patológico que desencadeia a transferência relacionada ao amor, ao desejo, ao gozo”, inclusive tirar o sentimento da vida[11]. Trata-se de uma posição que Lacan faz equivaler ao “já ninguém” (plus personne): “saber que estamos mais bem no lugar do representante da representação, ou seja, em um lugar vazio”[12].
É a partir desse lugar, que poderemos contrariar o sonho de eternidade para introduzir o tempo real, no qual a unidade não é mais da ordem do significante, mas da imagem, que aparece como real[13]. “Recorremos ao imaginário – o corpo, o tecido – para nos fazer, uma ideia do real”[14]. O tempo se transforma em matéria, é um tecido a ser cortado, manipulado, deformado.
Na contramão das técnicas aprendidas por J para despertar – que permitem com que ele interrompa o sonho de angústia até encontrar um modo de se empoderar diante da raiva [enojo] do Outro e, assim, de fugir vez e outra do real –, o analista busca cortar a debilidade, reduzindo a sessão a um instante e evitando o pendor dormitivo em que o sujeito continua dormindo. Sem se identificar ao inconsciente, que culminaria em um querer interpretar, ele escande o encontro – suspendendo o momento de concluir e o tempo de compreender – a partir de um equívoco (en-ojo [“no olho”]), para dar lugar ao encontro com o real, no qual o sujeito, sob transferência, permanece localizado no lugar de objeto-causa para o Outro. A sessão analítica pode se reduzir à escansão. “E, parece-me – diz Miller – que isso se justifica quando ela designa como término, o despertar: não que cesse o sintoma que, por sua vez, não cessa de se escrever, mas que emerja o real que não cessa de não se escrever”[15]. E ainda acrescenta que “uma sessão de psicanálise que se respeite, qualquer que seja sua duração, tem por função, escandir o encontro sempre faltoso com o real, aquele que se passa entre sonho e despertar”[16].