Micaela Parici – Observatório sobre Legislação, Direitos, Subjetividades contemporâneas e a psicanálise
O inimigo está em cada um,
ainda que se prefira reconhecer fora de si,
como inquietante estranheza
(Pérez, J., 2013).
Violência singular
O que acontece em torno de uma “epidemia” como a violência chamada gênero convidou-nos a pensar no que esse nome do Universal não logra pegar da singularidade de um gozo mortífero, a partir de seu tratamento em dois âmbitos que pareciam apresentar-se como opostos e que convocavam uma mulher: sua análise e a Justiça.
Uma mulher em análise marca sua relação com um homem dentro das coordenadas que nomeia “machismo vs. Feminismo”. Da injúria desmedida aos golpes, empurrá-la pelas escadas, enforcá-la, até uma cena com uma arma: “vou matá-la pelo ódio que me provocas”.
A violência de gênero, nos diz Bassols (2016), “não é outra coisa senão a impossibilidade de reciclar esse gozo do outro, alteridade do gozo que o gozo feminino faz presente”1.
Da mesma forma, Bassols dirá “(…) frente ao problema irredutível do gozo do Outro como traumático, há ao menos duas vias, dois mecanismos, duas possibilidades. Uma é a construção de um fantasma, que é uma versão e uma resposta a esse gozo do Outro. A outra é a passagem ao ato violento, que põe em ato este fantasma, atravessando o marco da tela”2. Cenas que se interpretam por fora da mediação simbólica, onde a angústia não proporciona um marco e nas quais, o Outro se situa como o insuportável; levam à pergunta pela singularidade do ódio que se experimenta para cada sujeito, frente ao que a violência traduz.
Para esta mulher, o parceiro se torna objeto de ódio e se reconhece na violência que experimenta como “ativa e provocadora”.
“Tu te fazes apanhar” é a intervenção de onde se aponta sua posição, mas, de qual ódio aqui se trata? É a intolerância ao gozo do Outro ou o ódio ao hétero do gozo próprio, o que se traduz em violência dirigida a uma mulher? Há uma alteridade irredutível do gozo que Lacan nomeia como Outro Gozo, do qual nada se quer saber e que se rechaça “com a segregação e a violência para extirpá-lo”3 (Bassols, M., 2018).
O semblante de horror não era o modo de comover isso próprio que deposita no Outro, trata-se, então, de ir lhe dando um nome, aquele que ela estivera disposta a dizer. Como intervir frente ao mortífero do gozo do qual nada se quer saber, que ingressava cada vez na sessão?
Clara Holguín (2013) o define da seguinte maneira: “Esse Outro gozo se organiza na experiência subjetiva em uma cena na qual o sujeito atribui ao Outro, a responsabilidade do experimentado, o objeto rechaçado é posto no Outro, no parceiro, ficando como estrangeiro e odiado, o mais íntimo é posto para fora: ‘o Outro me’”4. O reconhecer-se ativa propicia uma separação do significante “vítima”, que até então lhe impede de responsabilizar-se.
Depois de várias interpretações nas quais a praticante aponta o ódio, inverte-se a questão, tocando sua contra cara, no ponto do amor: “não estás apaixonada por este homem”. Apontando a esclarecer seu verdadeiro parceiro: a violência.
Violência de Gênero
A intervenção possibilita uma exposição policial depois de uma nova cena; sua denúncia se sanciona “violência de gênero”, algo que a interpela e surpreende: o Outro da Justiça nomeia aquilo ignorado por ela: “medida urgente”, “situação de alto risco”; gravidade que diz desconhecer por completo, ela “não se sente em perigo”.
Este caso permite pensar no modo em que cada sujeito tramita a violência que o habita e a violência que recebe do outro. O modo singular em que este sujeito podia ir armando um relato em torno dos golpes que recebia, deixava em evidência, a diferença que existe entre os tempos subjetivos e os da Justiça, onde a urgência de proteção à vítima é que orienta a ação. Do que se trata na análise é de situá-la mais além da vítima, como responsável; enquanto os significantes do Outro social ou jurídico não logram tocar o gozo que a habita, o “buraco fundamental”5, como o nomeia Bassols (2009), que funda o princípio de todo laço, que implica em sua existência um impossível: o ódio ao gozo.
Aparecerá sua adesão ao significante “feminista” e isto possibilita orientar a cura em torno do singular tratamento do feminino para esta mulher, do gozo opaco. Neste ponto, Miller (2013) nos dirá “Pode-se ser na cidade uma feminista perfeitamente autêntica e depois, no divã, confessar que goza pensando em ser espancada e violentada. Isto não é uma contradição, são dois níveis do ser”6; quer dizer que do que sua análise tentará protegê-la, é de seu próprio gozo. Neste sentido, na Oficina de Violência Familiar, tentando comover sua posição, questionam-na da má maneira, a partir do universal: “que feminista ou defensora das mulheres és tu se te deixas apanhar?” Apontar ao coletivo, evidenciando a contradição existente entre “mulheres espancadas” e “feministas”, não logra tocar o real que, para esta mulher espancada que se nomeia feminista, se põe em jogo. No entanto, pode-se pensar que sua singular identificação às feministas permite furar, de certo modo, o lugar de espancada, tão consistente quanto impossível de simbolizar, “um tratamento possível da pulsão ineliminável, cuja orientação se opõe ao ideal de cura e de domesticação pulsional”7 (Morao, M., 2013).