Flory Kruger – EOL-AMP
Introdução
O tema que nos convoca neste número de nossa Revista Lacan XXI tem a ver com o próximo Congresso da AMP: O Sonho. Sua interpretação e seu uso no tratamento analítico.
Extraí o título deste trabalho de uma frase de Miller que diz assim: “Daí que, às vezes, o que desperta no sonho, a angústia, justifica que seja situada como aparente, como um pseudodespertar, que só está ali para permitir continuar sonhando”.[1]
Não há dúvida de que é um tema que nos interroga no centro mesmo de nossa clínica, na medida em que, desde Freud até nossos dias, houve variações a respeito do lugar que é dado aos sonhos na direção da cura.
O analista tem que interpretar os sonhos? Continua sendo a via régia ao inconsciente ou nossa concepção do sintoma muda esta afirmação? Qual é o uso que dá o analisante a seus sonhos? É para aportar algo ao analista? É uma demanda de interpretação?
Estas e muitas outras serão as perguntas que teremos que ir respondendo a caminho do Congresso.
Com Freud
Sem dúvida, o sonho para Freud ocupou um lugar protagonista, já que ele o concebeu como a via régia ao inconsciente, na medida em que dava conta do que foi seu descobrimento central.
Freud estuda o sonho como se fosse uma mensagem cifrada, inclusive lhe atribui leis próprias, como a condensação, o deslocamento e a dramatização, tentando formalizá-lo mais além daquelas tendências que pensam que há sonhos que portam uma significação universal.
Começou por demostrar que existia uma técnica psicológica que permite interpretar sonhos e que, se este procedimento é aplicado, todo sonho aparece como um produto psíquico provido de sentido.[2]
Se os sonhos portam um sentido, é preciso encontrar esse sentido em sua articulação com o texto que relata o sonhador.
O sintoma, o lapso e os chistes foram outras manifestações que Freud foi somando para dar crédito à existência do inconsciente.
Lacan pôs um nome nessas manifestações, chamou-as de formações do inconsciente e, tal como propunha Freud, a escuta analítica era orientada para elas.
Sonho e fantasma
Nesta série das formações do inconsciente não está incluído um dos conceitos centrais que participam da clínica: refiro-me à fantasia ou ao fantasma.
Freud, muito cedo falou de fantasias, dando um sentido prazeroso a pensamentos que constroem um sujeito para sua satisfação; também as chamou de devaneios.
Qual lugar ele deu a estas fantasias e qual a diferença que podemos estabelecer com o sonho?
Uma resposta possível é que as fantasias ou fantasmas se produzem em estado de vigília. Ao contrário, o sonho supõe o dormir, o qual indica que o sonhador não tem controle consciente sobre o que ocorre durante o sonhar. Geralmente o sonho surpreende o sonhador por seu conteúdo inesperado e, sobretudo diverso, muitas vezes contrário à vontade consciente do sonhador.
Isso nos demonstra que a lógica que rege o sonho fica ignorada por quem o sonha.
Podemos marcar uma diferença com aqueles fantasmas que obedecem ao capricho do sujeito, que é quem os organiza e dos quais tem plena consciência; além disso, poderíamos acrescentar que, inclusive, lhe são familiares e conhecidos.
As fantasias conscientes não contam com a diversidade e surpresa que geram os sonhos, já que são quase sempre as mesmas; têm um valor de permanência pelo qual não surpreendem e, muitas vezes, o analisante as silencia, não fala delas porque se envergonha, na medida em que seu conteúdo, muitas vezes não coincide com seus valores morais.
Não ocorre o mesmo com os sonhos. O paciente espera sua sessão para relatá-los.
Tal como pensava Freud, os sonhos participam de uma dialética com o inconsciente que torna possível sua interpretação.
Das fantasias ao fantasma
Anos depois, Freud retoma o tema das fantasias quando escreve “Bate-se numa criança”. Introduz, com este exemplo, a ideia de uma fantasia única. Mas, longe de ser produto da imaginação que cada um inventa para pavimentar as dificuldades de sua vida, o fantasma se transforma em uma frase condensada e enigmática para o sujeito.
Deste modo, não apenas passa do plural dos fantasmas a sua singularização, mas também, com os desenvolvimentos de Lacan, surge o conceito de fantasma fundamental.
J.-A. Miller retoma este conceito que Lacan nomeou em escassos momentos e constrói uma lógica da cura que vai do sintoma ao fantasma.
Nova diferença com os sonhos, que longe de ser uma frase, sempre a mesma, são, a cada vez, diferentes, inesperados, floridos e surpreendentes, às vezes prazerosos e outras sofridos, mas oferecidos a sua interpretação, diferentemente do fantasma fundamental, que vai se construindo ao longo da análise de um sujeito.
Com Lacan
Lacan nos mostra que a construção do fantasma e seu atravessamento têm um lugar privilegiado na direção da cura. Então, devemos nos perguntar: qual o lugar que ele atribui à interpretação dos sonhos?
Fica claro que, para Freud, os sonhos tinham um lugar fundamental enquanto eram a via régia ao inconsciente; mas a presença do fantasma e o lugar central que adquire o sintoma na clínica lacaniana orientada ao real produzem uma mudança no lugar central que ocupava o sonho para Freud.
Lacan tira esse protagonismo do sonho para dá-lo ao sintoma.
Quanto à construção do fantasma, vai realizando-o à medida que a análise avança na relação que cada sujeito tem com seus objetos, na queda das diversas identificações, no percurso do que motoriza seu desejo. Enquanto que, com o sonho, o sujeito se alivia quando pode relatá-lo e encontrar um sentido para ele.
A interpretação dos sonhos
Seguindo com a orientação ao real que assinala Lacan, as coisas na prática mudaram e a interpretação dos sonhos sofreu um deslocamento. Também é preciso levar em conta o momento da análise.
Nos começos, trata-se de formalizar o inconsciente sob transferência; só então podemos falar de um inconsciente no trabalho do saber, na medida em que está dirigido ao Sujeito suposto Saber.
O sonho como manifestação do inconsciente provoca uma proliferação de associações do sujeito oferecidas à interpretação. É o tempo do inconsciente transferencial. Ao ter como destinatário um analista, o que busca é saber algo do enigma de seu sonho.
A função do analista é interpretar o relato, mas buscando, com sua intervenção, produzir o efeito de irrealizar o referente.
Ao final de uma análise, ao contrário, seria necessário compreender o sonho como uma resposta frente ao real. Portanto, o analista não apontará a implantação das associações, mas sua intervenção, usando a operação redução, terá como meta, o despertar da emergência do real.
Comecei com uma citação de Miller e terminarei com outra de suas reflexões:
Miller se pergunta se abordar a psicanálise pela via do sonho como se fez historicamente é o melhor. Sua resposta é muito clara:
“Lacan assinalou outra via para a psicanálise – não sei se é régia, mas não me incomodaria que fosse proletária – : o sintoma, que coloca a questão de saber de que modo o sujeito pode advir ao saber sem sujeito, quer dizer que condiciona a forma mesma na qual adquire sentido e gozo, o saber sem sujeito”.[3]