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PRIMEIRA CONVERSAÇÃO DE RUA – PESQUISA


lacan21 - 16 de abril de 2016 - 0 comments

“Giro”. Artista: Adolfo. L.R.Londoño

Angélica Bastos

Vou apresentar as linhas de um eixo de pesquisa desenvolvido na Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No Brasil, este foi o primeiro Programa de Mestrado e Doutorado em Psicanálise, que nasceu há 27 anos atrás com o nome de Teoria Psicanalítica porque na época julgou-se necessário demarcar uma diferença entre os conceitos do campo psicanalítico e o que se faz na faculdade de Psicologia a título de psicanálise: uma corrente na Psicologia da Personalidade, do Desenvolvimento ou uma Psicoterapia. Considerando que para Lacan não há teoria psicanalítica, mas ensino a analistas, e que na universidade não trabalhamos necessariamente com psicanalistas, o-que-fazemos-quando-fazemos-pesquisa-na-universidade possui, por várias razões, estatuto de questão.

A fim de delinear possibilidades e dificuldades recolhidas até o momento, vou colocar rapidamente algumas ideias gerais que vem orientando o trabalho de pesquisa.

As relações entre saber e verdade condicionadas pelo discurso do analista não se transpõem ou se reproduzem para além da prática de uma análise. Não se transpõem, portanto, para a universidade, seja na investigação dita empírica – às vezes chamada pesquisa-intervenção ou clínica – seja na pesquisa dita teórica, distinção a ser revista a partir do saber textual e das idéias referenciais. Tal como pude depreender ao longo do percurso, nessa extensão da psicanálise busca-se transmitir a descoberta freudiana, no caso, segundo a orientação lacaniana.

A questão metodológica parece-me sintetizada na premissa de que a pesquisa na universidade é uma extensão da psicanálise, estando em uma espécie de prolongamento – e não em relação de exterioridade, com a intensão. A pesquisa também comporta uma dimensão de ensino, que corresponde a ensinar o que não se sabe, ou a aprender não sobre a Psicanálise, mas a partir da Psicanálise, conforme formulou Freud[1]. Eventualmente, envolve supervisão clínica, como veremos em um projeto desenvolvido recentemente.

Refiro-me a um eixo de pesquisa porque envolveu uma série de projetos inicialmente nos quadros de um acordo com uma instituição de saúde mental e também na Divisão de Psicologia Aplicada da universidade, a clínica-escola, na qual alunos-estagiários prestam atendimento clínico à população com a supervisão de um docente. Essa série de projetos visava ao tratamento de crianças autistas e psicóticas. Psicólogos do serviço de saúde mental, alguns dos quais psicanalistas, firmaram um convênio com uma professora da pós-graduação, Ana Beatriz Freire, a quem me reuni para investigar o tratamento psicanalítico na instituição. Aos poucos eles se interessaram pelo mestrado e pelo doutorado, de modo que pessoas deste serviço fizeram suas dissertações de mestrado e teses de doutorado conosco sobre a psicose na criança, o objeto no autismo, a transferência. Uma vez que pesquisa e tratamento coincidem – até certo ponto, complementava Freud – esse acordo nos permitiu dar uma inflexão clínica à pesquisa, além de por à prova da experiência a maneira com que vínhamos subjetivando os conceitos. Propiciou também trazer para a pesquisa acadêmica, tanto os casos em tratamento no serviço de saúde mental, quanto questões institucionais como a prática entre vários, discutida pela equipe e pelas pesquisas.

As categorias com as quais o discurso do mestre reparte a população – criança, adolescente, adulto e as categorias clínicas – autismo e psicose – em que este discurso é pródigo logo produziram aqueles que não poderiam ser acolhidos na instituição de saúde mental, seja pela idade – por não serem mais crianças -, seja por corresponderem aos chamados inclassificáveis, ou ainda por apresentarem comorbidades como comprometimentos orgânicos acompanhados de debilidade mental. Assim, passamos a receber alguns casos na clínica-escola, o que permitiu nova aproximação entre pesquisa e tratamento, já que esses casos encaminhados pelo serviço de saúde mental eram tratados no serviço da universidade e ali supervisionados.

No Brasil, a constituição de 1988 garante o direito à escola para todos e uma lei de 1989 considera crime sujeito à multa ou prisão qualquer objeção à permanência do aluno em escola pública ou privada devido a uma deficiência. O contexto normativo brasileiro modificou-se pouco a pouco, considerando contrário aos direitos humanos e à constituição da república a manutenção dos ditos deficientes apenas em classes e escolas especiais, quando a inclusão em classes regulares é possível. Isso significou a frequentação compulsória da escola regular por crianças autistas e psicóticas que transpunham os muros da escola-para-todos, muitas vezes independentemente de suas condições subjetivas. Colocou-se para nós um problema cuja lógica, como ciência do real, nos levou a trilhar o caminho para a modalidade do impossível: um projeto de pesquisa sobre o impossível de educar na escolarização de crianças autistas e psicóticas. O diretor da faculdade de psicologia chegou a propor que ministrássemos cursos de introdução ao autismo e à psicose na criança para psicólogos, psicopedagogos e professores, pois neste momento houve grande oferta de cursos de extensão para responder à situação. Não aceitamos o convite. Um dispositivo de conversação instalou-se a partir de demandas surgidas na ou endereçadas pela instituição de saúde mental em que ocorria o tratamento. Ele foi conduzido pela psicanalista Jeanne Marie Costa Ribeiro, de nosso grupo de pesquisa e do hospital, com o intuito de promover a circulação da palavra entre os envolvidos no tratamento e na educação da criança, a fim de que as soluções fossem encontradas a cada caso

Agora menciono algumas dificuldades: nossas possibilidades de financiamento à pesquisa estão condicionadas a fatores como a crença ou o preconceito de que a pesquisa empírica ou a pesquisa-intervenção é a pesquisa por excelência, ao discurso dominante sobre a relevância teórico-clínica e social das propostas de investigação, mas também à aprovação dos projetos em comitês de ética na pesquisa. Estes exigem a assinatura de um termo de consentimento livre e esclarecido, de acordo com as normas do Conselho Nacional de Saúde, e detalhamento metodológico para a aprovação das propostas, classificáveis quanto ao risco. Para os casos tratados no hospital, a equipe de saúde mental dispõe da autorização dos pais. Para os casos acolhidos na clínica-escola, não temos o termo do qual depende a publicação, assim como para pesquisa recente sobre o trabalho do mediador, por alguns denominado facilitador. Esta figura forjada na esteira das leis de inclusão para assessorar a criança e o professor em sala de aula foi por nós estudada em suas conjunções e disjunções com o acompanhamento terapêutico e, sobretudo, a partir da orientação que a psicanálise pode proporcionar a esta prática emergente.

Algumas destas dificuldades são conjunturais e, em se tratando de universidade, conforme disse Lacan, a crise é de estrutura[2]. Por isso, trata-se, a cada projeto e de um modo sempre único, de mobilizar o saber referencial, o saber do psicanalista e o inconsciente.

[1] Freud, S. (1919) ¿Debe enseñarse el psicoanálisis en la universidad? Buenos Aires, Amorrortu, vol. XXVII, 1976.
[2] Lacan, J. “Alocução sobre o ensino”. Outros Escritos. Rio de Janeiro, JZE, 2003, p. 297-310. “Allocution sur l’enseignement”. Autres Écrits., Paris, Seuil, 2001.