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A máquina de moer gente


lacan21 - 24 de junho de 2022 - 0 comments

Helenice de Castro (EBP/AMP)

Encontro em A terceira[1] a proposição de Lacan de que “as palavras introduzem no corpo algumas representações imbecis”. O impacto dessa asserção me remete imediatamente a questão do racismo no Brasil.

Como nos adverte Silvio Almeida[2], apesar de hoje ter se tornado lugar-comum a afirmação que tanto a antropologia como a biologia do século passado demostraram a inexistência de fatores biológicos ou culturais que justifiquem um tratamento hierarquizado dos diversos sistemas morais, culturais, religiosos e políticos, a noção de raça prossegue sendo utilizada para velar desigualdades e legitimar a segregação de grupos raciais historicamente discriminados, como o dos afrodescendentes no Brasil.

A ideia de vivermos uma democracia racial, difundida por tantos anos no país, acabou por negar a existência perversa do binarismo branco-negro, onde ao primeiro está garantido os privilégios da “clara cor do opressor”[3].

Em que essa questão interessa à psicanálise, podemos perguntar.

A afirmação de que “as palavras introduzem no corpo algumas representações imbecis”, parece-me então abrir uma nova via para retomarmos as elaborações de Freud, elaborações essas respaldadas por Lacan, de que o ser falante é um ser social, e que, portanto, o sujeito não está desatrelado do coletivo.

Ao explorar esse enlaçamento entre o singular e o coletivo, Jacques Alain Miller em Intuições Milanesas nos dirá que a definição de que “o inconsciente é a política” surge em Lacan ligada à noção de que o inconsciente é estruturado no e pelo discurso do Outro:

“a definição do inconsciente pela politica tem raizes profundas no ensino de Lacan. “O inconsciente é a política” é um desenvolvimento de “O inconsciente é o discurso do Outro”. Essa relação com o Outro, intrínseca ao inconsciente, é o que anima desde o início o ensino de Lacan. É a mesma coisa quando estabelece que o Outro é dividido e não existe como Um. “O inconsciente é a política” radicaliza a definição do Witz, do chiste como processo social que tem seu reconhecimento e sua satisfação no Outro, enquanto comunidade unificada no instante de rir.”[4]

Pois bem, se o inconsciente é o discurso do Outro, estamos no campo do inconsciente estruturado como uma linguagem, onde o Outro se equivale ao Outro simbólico ou mesmo ao mar de significantes onde o sujeito se banha em sua constituição.  Nessa mesma dimensão, a dialética do desejo se instala com o sujeito tentando decifrar o seu desejo tomando-o como desejo do Outro, já que o desejo se constituirá através dos desfiladeiros dos significantes da linguagem.

O interesse aqui é destacar então esse laço do sujeito com o Outro enquanto o Outro se equivale a estrutura de linguagem que o permeia.

Ainda em Intuições Milanesas, Miller retomará a crítica de Lacan feita a Daniel Lagache para dizer que a estrutura que está em jogo na psicanálise foge da antinomia entre aquela que visa descrever ordenadamente a realidade e a do modelo teórico elaborado longe da experiência. Essa oposição entre a estrutura como descrição e como modelo, desconsideraria um terceiro modo no qual é a própria estrutura que coloca em cena a realidade através dos efeitos que produz.

Seguindo nessa mesma direção, chegamos à proposição de Lacan de que a estrutura opera na realidade “como máquina original que coloca em cena o sujeito”[5] a partir de seus efeitos de verdade e de gozo.

Ao desdobrarmos um pouco mais essa proposição temos a estrutura definida como essa máquina constituída por uma combinatória significante que determina e condiciona rigorosamente as variações possíveis. O sujeito é assim, nos lembra Miller, colocado em cena ao mesmo tempo como ator e como expectador, mas jamais como diretor.

O adjetivo original que acompanha o substantivo máquina apontaria para o que surge de único na dimensão combinatória dos significantes ali em jogo, descartando daí uma origem genética. Por essa via, a experiência analítica visaria reconstituir a particularidade dessa máquina original em cada caso.

Mas se a psicanálise sustenta a transindividualidade do sujeito e se, como vimos acima, “o inconsciente é a política” no que remete ao enlaçamento com o discurso do Outro, a máquina original que coloca em cena o sujeito implicaria também o sujeito da civilização, não restringindo assim a proposição de Lacan à experiência analítica strictu sensu.

Essa pequena digressão sobre a noção de estruturalismo em Lacan, já bastante conhecida por muitos de nós, me serve aqui para retomar a questão sobre o racismo no Brasil a partir da concepção apresentada por Silvio Almeida do racismo estrutural[6].

Se estávamos habituados a restringir o racismo ao âmbito individual cuja resposta seria uma responsabilização jurídica do indivíduo, ou mesmo se chegamos ainda a avançar ao conceber que as relações raciais se constituem pelo poder de um grupo sobre outro através de aparatos institucionais, a noção de racismo estrutural explicita que as instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou mesmo de um laço social que tem o racismo como um de seus elementos originais.

A ênfase à dimensão estrutural do racismo revela, portanto, que o genocídio do negro no Brasil diz respeito a todo um sistema social que funciona como uma máquina produtora de desigualdade, onde estamos todos envolvidos.

E como nos lembra Marcus André Vieira, se há uma contribuição de Lacan a esse debate “é que na clínica psicanalítica o termo “estrutural” só existe para localizar de que modo o sujeito pode ser chamado a participar da subversão dessa estrutura”[7], tornando assim menos imbecis as representações que cada um carrega no corpo.

 


[1]           LACAN, J. (1974/2011) “A terceira”.  In: Opção Lacaniana, n. 62. São Paulo: Edições Eolia, p.14.
[2]           ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. p. 31.
[3]           VIEIRA, M.A. Meus dias de branco. In: Correio express, Revista eletrônica da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 22, abril, 2022. p.2
https://www.ebp.org.br/correio_express/2022/04/18/meus-dias-de-branco1/
[4]           MILLER, J. Intuições milanesas. Opção Lacaniana online, ano 2, número 5, novembro, 2011. p.6 http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intuições_milanesas.pdf
[5]           LACAN, J. (1960/1998) Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: psicanálise e estrutura da personalidade. In: Escritos. São Paulo: Jorge Zahar Editor. p. 655
[6]           ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. p. 46-57.
[7]           VIEIRA, M.A. Meus dias de branco. In: Correio express, n. 22, Revista eletrônica da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 22, abril, 2022. p.4 – https://www.ebp.org.br/correio_express/2022/04/18/meus-dias-de-branco1/