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De um discurso sem sujeito. O ato analítico por oriente.


lacan21 - 26 de maio de 2020 - 0 comments

Alejandra Korek - EOL AMP - “Corpo estranho”. Colagem analógica, 40x40cm, 2018.

Alejandra Korek – EOL AMP – “Corpo estranho”. Colagem analógica, 40x40cm, 2018.

Alejandro Góngora – Associado NEL – Santiago

Quem se entrega ao estudo dia a dia acrescenta seu saber.

Quem se entrega ao Tao dia a dia se desfaz de seu saber.

diminuindo e diminuindo

alcança finalmente o estado de não-obrar.

No não-obrar não há nada que não faça.

Tao Te King, XLVIII.

No presente artigo, interessa-me trabalhar uma orientação para nos aproximarmos ao que Lacan propõe como ato analítico, caracterizado por um revés com relação aos outros discursos, já que em seu ato prescinde de intencionalidade de um agente, estabelecendo-se como um discurso sem sujeito. Para isso, o conceito de Wu-Wai do taoísmo, o qual Lacan conhecia com bastante profundidade a partir de seus estudos de chinês e de sua relação com François Cheng, nos será útil para compreender o paradoxal desse ato. Para isso, tomarei uma frase de Lacan de seu escrito “O equívoco do sujeito suposto saber”, que me faz questão: “Ato que funda em uma estrutura paradoxal pelo fato de que nele o objeto é ativo e o sujeito subvertido”.

Interessa-me, em particular, a atividade do objeto, para lograr elucidar de qual atividade se trata, de que ato se trata quando o sujeito ou um significante não é o agente desse ato.

Se no ato analítico o sujeito fica subvertido pela atividade do objeto, então esse ato não é da ordem da diferença significante S1 – S2 a qual, como sabemos com o primeiro Lacan, produz um sujeito. Portanto, o ato analítico não é da ordem da produção de sentido, mas do fora de sentido.

Recordamos o discurso analítico, onde o analista no lugar de objeto causa se dirige a um sujeito, não para que este produza sentido, mas para extrair de seu discurso os significantes amo, rompendo o semblante para a enxurrada dos S1 que fazem marca de gozo. Isso já nos propõe um segundo paradoxo: o analista lê para que o sujeito escreva. Se poderia pensar que a leitura é posterior à escrita, mas o psicanalista põe os pés na cabeça, é sub-versivo: primeiro se lê, se enuncia, depois se escreve.

Seguindo os passos de Lacan, proponho que o ato analítico não é um ato do analista, tampouco do analisante, mas é o ato do objeto e é isso o que dá um estatuto diferente a esse ato.

Lacan, no Seminário 18, introduz o conceito de Wu-Wei, onde Wei é o ato. Mas para os chineses esse mesmo ideograma lhes serve para utilizá-lo “como”, isto é, lhes serve para fazer metáforas. Lacan ressalta que o fato de fazer uma metáfora implica que o metaforizado não é a coisa metaforizada, porque na metáfora há um passo de sentido (pas de sens), que em francês é homofônico a “não há sentido” (pas-de-sens). Isto é, na metáfora, ao mesmo tempo, há uma produção de sentido, há uma fuga desse, há algo que se perde, um sem sentido.

De alguma maneira, na metáfora já se introduz um “não”, que é como, em geral, se traduz “Wu”, como um “não”, traduzindo-se Wu-Wei como Não-Ato. O que proponho com isso é que já de entrada se introduz a negatividade na metáfora, a qual chamarei de um esvaziamento de sentido.

Existirá uma maneira de metaforizar o que não produz sentido? Talvez na poesia oriental e na prática do Koan, no Budismo Zen, podemos encontrar uma orientação:

“Uma vez um monge perguntou a Joshu: Diga-me qual é o significado da chegada do primeiro patriarca do ocidente? (Isto é, qual é a verdade fundamental do budismo Zen?) Joshu respondeu: O Cipreste no jardim.”

Neste Koan podemos notar o uso enigmático que o Budismo Zen outorga à linguagem. Diante de uma pergunta fundamental do budismo, o mestre entrega uma resposta que não está planificada, fora de toda intencionalidade. Responde com o que há, com a contingência de que nesse momento observa o cipreste no jardim, e, diante dessa experiência, é como se respondesse: “Isso é o zen, esse cipreste no jardim que cresce sem nenhuma intencionalidade e que se apresenta ante meus olhos”. No entanto, a elaboração que se acaba de fazer reintroduz a resposta do sentido, como se o mestre nos lançasse um enigma a ser resolvido. Não obstante, não temos nenhuma notícia de que esta tenha sido a intenção do mestre; é sim nosso intento de dar sentido à resposta.

Mais além das divagações que possamos fazer com relação ao caráter dessa resposta, é claro que não é uma resposta que introduza um sentido, e sim o desloca, o esvazia de sentido. Poder-se-ia propor que a figura “O cipreste no jardim” é já uma metáfora, é a maneira de nomear algo dessa experiência, desse afeto produzido pela presença do cipreste e a pergunta do discípulo. Poderíamos chamar a isto o grau zero da metáfora, onde um significante marca contingentemente o afeto produzido, sem que isso chama outro significante.

Para os Taoístas, o tao é deixar passar, o que faz que “isso”, o inominável, a atividade da coisa, não deixe passar. Wu-Wei é entendido, portanto, como Não Fazer Nada, mas, no entanto, é um Não Fazer que não deixa nada sem Fazer. Como um Não-fazer pode não deixar nada sem fazer?

Insisto neste ponto, já que é um problema de intencionalidade. No objeto não há intencionalidade, não há projeto, não há busca de utilidade. Deixar que as coisas venham por si mesmas, sem carregá-las do peso de nossos projetos, de nossa vontade. Por isso o Taoísmo é um ensino sem palavras, para deixar vir o tao (O caminho), a única via é o silêncio.

François Jullien, em seu prólogo à edição de Tao Te King, realizada por Anne-Hélène Suárez Girard, nos diz: “Por isso Lao Zi desconfia do dizer. Igual que o sábio ou o estrategista evita agir. Se as fórmulas são breves, inclusive abruptas, se o texto é curto e desgastado, é porque se cuida de não impedir o passo ao natural, que é o que quer expressar, porque o natural é falar pouco, permanecendo no umbral da palavra e evitando enunciar demasiado.” Como o princípio do Wu-Wei não força nada: «O caminho exerce sua atividade criadora no interior da coisa, como princípio existencial próprio desta, de modo que a atividade do caminho é a atividade da coisa.» Não posso deixar de escutar nessas formulações reminiscências do que disse Lacan. A atividade no interior da coisa é a atividade do objeto. Nesse sentido, o que entendem os chineses como virtude é o deixar passar, consentir com a atividade da coisa, esvaziando-a de intencionalidade.

“O caminho é uma vasilha vazia. Não importa o quanto a utilizes, nunca poderá enchê-la.”

Essa citação é similar ao que manifesta Miller em seu curso La fuga del sentido sobre o tonel das Danaides: “Esta é, no fundo, a descrição clássica do tonel das Danaides: quanto mais sentido se coloca – e não se pode colocar sem descontinuar – quanto mais se corre, mais se escapa do tonel que deveria contê-lo.” Uma vasilha, um tonel por onde escapa o sentido.

Na constante articulação da linguagem, dos significantes, há algo que escapa, por mais que se preencha de novos significantes, de novos sentidos. Como cortar o sentido e tocar algo do gozo?

Proponho que Wu-Wei é o ato de esvaziamento de sentido, e esse esvaziamento requer certa espera, cautela, suavidade. Não é algo que possa produzir o analista intencionalmente, já que é a atividade da coisa mesma. O analista deve deixar passar essa atividade da coisa como se fosse um judoca ou um praticante de Aikido, para que algo caia e precipite o ato.

Como pensar um ato sem agente? Esse é o desafio que nos convida Lacan. O que lhe ajudou a pensar tal ato onde o objeto é ativo e o sujeito fica subvertido? Minha aposta é que Lacan se apoia, pelo menos em parte, no pensamento chinês e no conceito do taoísmo, Wu-Wei, o não-ato, um ato sem intencionalidade. As flores crescem por Wu-Wei, sem esforço, porque não há um vetor de intencionalidade. Dessa maneira, o Wu-Wei é um ato que subtrai, esvazia de sentido o próprio ato. Não se trata de não fazer nada, mas sim que esse ato se oriente pelo vazio que nos habita, por um fora de sentido, pelo real.

Tradução: Gustavo Ramos

NOTAS:
1.Lacan, Jaques. (2012). ¨La equivocación del sujeto supuesto saber¨, en Otros escritos, Paidós, Buenos Aires, 2012, p. 352. [Disponível em português em: Lacan, Jacques. O engano do sujeito suposto saber. In: Outros Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.]
2.Lacan, Jacques. (1971). El seminario. libro 18., De un discurso que no fuera del semblante. Paidós, Buenos  Aires, 2009. [Disponível em: Lacan, Jacques. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante (1971). Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.]
3.Izutsu, T. (1977). Hacia una filosofía del Budismo Zen. Editorial Trotta, Madrid.
4.Ibid, p. 147.
5.Tse, L. (2007). Tao Te King. Cuatro Vientos, Santiago.
6.Jullien, F. (1998). Prologo. En L. Zi, Tao Te King. Siruela, Madrid, p. 13.
7.Izutsu, T.  (1997). Sufismo y taoísmo. Laozi y Zuangzi Vol.II, Siruela, Madrid.
8.Ibid. p. 131
9.Miller, J.-A., (2012). La fuga de sentido. Paidós, Buenos Aires, 2012.
10.Tse, L. (2007). Tao Te King. Op. cit.