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Despertar a opacidade


lacan21 - 9 de novembro de 2019 - 0 comments

Manolo Rodríguez. “El arca”. Acrílico sobre tela. 2012. Argentina.

Manolo Rodríguez. “A arca”. Acrílico sobre tela. 2012. Argentina.

Gustavo Stiglitz – EOL-AMP

 

“Vende inteligência e compra assombro.

A inteligência é opiniões e o assombro, intuição.”

Máxima Zen

O delírio psicanalítico e a perda de realidade

“A psicanálise não é uma ciência… É um delírio – um delírio do qual se espera que leve a uma ciência. Podemos aguardar muito tempo! Não há progresso e o que se aguarda não é, precisamente, o que se recolhe*”.[1]

Em 1914, Freud escreve a seu filho mais velho, Martin, que estava no front de guerra e com quem compartilhava todas as questões da economia familiar, preocupado pelo tema e não sem um toque de humor:

“Se alguém tem uma disposição pessimista (este é o pequeno toque de humor), dirá que um consultório internacional, depois de uma guerra mundial, por não falar dos tempos durante a guerra, não subsistirá. É provável que meus russos, holandeses e alemães não regressem. De Viena, nunca tirei nenhum proveito (!).”

E mais otimista, acrescenta:

“Mas, como já disse, tudo é incerto, não está descartado que os Estados Unidos ajudem, o que o delírio que me catapultou demonstre ser tão forte, contra a realidade, que sim, seja possível ter uma atividade reduzida.”[2]

Que outra coisa pode ser o delírio que o catapultou, além de sua hipótese do inconsciente? O delírio é algo que Freud conhecia bem, ainda que não o diferenciasse muito precisamente do onirismo e do sonho.

É justamente, talvez, essa imprecisão, o que lhe permitiu compartilhar uma ideia bem precisa, que desenvolve em 1924, em seu texto sobre “A perda da realidade na neurose e na psicose”.[3]

Perda de realidade há  nas duas. Diferentemente do que escreveu pouco antes em “Neurose e psicose”,[4] aqui todos estão em perda, mas cada um constrói sobre ela uma solução, o que faz certa equivalência entre o delírio do psicótico, o fantasma do neurótico e os sonhos. Certa equivalência, não mais, consistente em ser instrumento para continuar dormindo na realidade o sonho do sentido, depois de despertar do sonho ao dormir.

A diferença estrutural passa agora, não pela perda de realidade, mas pela qualidade do que vem a substituí-la.

Que Freud diga que sua hipótese do inconsciente é um delírio, ainda que não seja no ambiente científico, mas no familiar, não deixa de chamar nossa atenção.

Até poderíamos dizer que se trata de uma hipótese ad hoc, que são aquelas que vêm em auxílio das falhas das hipóteses aceitas, em lugar de um furo no saber.

Sonho e umbigo

Sempre se fala da inteligência de Freud, mas, o mais destacável é sua capacidade de assombro.

Como diz a máxima zen, a inteligência freudiana vem em segundo termo para opinar sobre o que sua capacidade de assombro pôde captar.

Por exemplo, que as distintas cadeias associativas a partir de um sonho se detêm em um ponto, escrevendo à borda de um buraco, ao qual chamou “umbigo do sonho”.

São muitas as referências lacanianas a este umbigo. É preciso dizer que a imagem escolhida por Freud, para aceder a algo desse ponto real no qual desemboca a análise do sonho, é especialmente boa, ao incluir o buraco e a marca que fica.

É uma boa imagem para captar uma borda de real, como explica Lacan em sua Resposta a Marcel Ritter: “O sujeito, por suas produções imaginativas… (condição de representatividade para a formação do sonho)… conserva, em alguma parte, a marca de um ponto onde não há nada a fazer”.[5]

O que escrevemos S(A/  ). S, a marca de um ponto onde não há nada a fazer, (A/  ).

Quer dizer, o furo no Outro e a marca que assinala essa ex-sistência.

É preciso dizer que também são frequentes os relatos de sonhos nos quais o sonhador tem clara apreensão de que também há um tipo de umbigo no início. “O sonho não começava assim, mas lembro que…”

O relato do sonho se inicia em uma opacidade ou talvez seja melhor dizer que a opacidade é sua causa.

Há um Unerkannte – impossível não reconhecido – com uma borda que escrevemos S(A/)) e que é estritamente o umbigo do sonho freudiano e, em algumas ocasiões, pode-se cernir o não reconhecido, no qual o sonho se origina.

Assim, da opacidade inicial à opacidade que fica como resto da análise do sonho, pontos limite da análise, só temos do sonho o relato do analisante, que se reduz a um balbucio.

Encontro este ponto claramente escrito por Lacan em sua resenha do seminário da Ética:  “… confiávamos em algo que registra a consciência do psicanalista: que do inconsciente não lhe chega através do sonho, mais que o sentido incoerente que este fabula, para vestir de frase o que articula”[6].

“Vestir de frase o que articula” diz muito bem uma função do sonho: evitar despertar o real. Vestir de sentido o inarticulável, para que pareça articulado.

É por aí mesmo que desponta um uso ético do sonho.

Lacan assinala desta maneira: […] isso que vem daí (do sonho) já é interpretação, a qual se poderia chamar de selvagem, e que a interpretação fundamentada com que a substitui (poderia ser tanto do analista quanto do analisante) não é melhor senão porque faz aparecer a falha que a frase denota.”[7]

“[…] fazer aparecer a falha […]”, até aqui nos dirigimos aos casos em que supomos que não se trata de uma solução puramente imaginária ao encontro com seu real.

Trata-se de fazer aparecer o inarticulável para submetê-lo cada vez ao trabalho de “vestir de frase”, mas de frase cada vez mais singular a cada analisante.

E Lacan continua em sua Resenha: O hieroglífico do sonho decifrado mostra um defeito de significação, e nele e não em outra coisa, o sonho conota um desejo. O desejo do sonho não é nada mais que desejo de cobrar sentido e a isso satisfaz a interpretação psicanalítica.[8]

Em minha opinião, não há que se ler aqui que a interpretação psicanalítica aponta a satisfação do sentido inconsciente. Creio que se trata aqui de um Lacan adiantado a si mesmo ou que a resenha foi escrita uns anos depois do seminário.

O acento está posto na satisfação. Mas, o desejo do sonho de cobrar sentido é desejo de responder ao real.

Por isso, continua: Mas, esta não é a via de um verdadeiro despertar do sujeito. Freud fez finca-pé no fato de que a angústia interrompe o sonho quando este vai desembocar no real do desejado. É certo, então, que o sujeito desperta apenas para continuar sonhando.[9]

O sonho “tocaria” o real apenas no instante justamente anterior ao despertar. Só sob transferência é que o analisante pode fazer algo com a marca que resta desse encontro.

É aqui que se abrem as perguntas a serem trabalhadas, que nos coloca o próximo Congresso da AMP em 2020, sobre a interpretação e o uso do sonho na cura, um uso distinto do deciframento.

 Uma opacidade desperta

Este subtítulo deve ser lido ao modo do título do filme “A star is born”: em uma análise, uma opacidade desperta.

Trata-se de despertar a opacidade própria de cada um, nos dois sentidos que a frase faz ressoar: despertá-la e despertar para ela**. Na realidade, trata-se de um só e mesmo movimento.

Ao núcleo opaco de nosso ser, a isso, é preciso despertá-lo? Sim, para poder, por sua vez, despertar para ele. E o que seria despertá-lo? Despertá-lo é cerni-lo, articular a uma borda de semblante o que tem de inarticulável, advertir sua ex-sistência para conviver o melhor possível com o gozo opaco de nosso sintoma, em lugar de fazer da vida uma cruzada contra, que sempre fracassará.

“O despertar em psicanálise não está vinculado nem à claridade, nem à iluminação, nem à transparência, mas, paradoxalmente, à sustentação de certa zona de opacidade”.[10]

Não há verdadeiro despertar do último Lacan. Ele o disse de várias maneiras. Tomo algumas formulações.

“Está claro que o homem passa o tempo sonhando, que nunca desperta”.[11]

“A enfermidade mental que é o inconsciente não desperta nunca”.[12]

“A ideia de um despertar é, num sentido estrito, impensável”.[13]

Uma psicanálise é a oportunidade de que a ausência de um verdadeiro despertar não seja uma condenação ao sonho eterno e tolo do não incauto de um real, o de cada um.

Tradução: Mª Cristina Maia Fernandes
*NT: traduções sem revisão, uma vez que se trata de obras que não contem versão em português.
** Em espanhol, “despertar a opacidade” pode ser escutado em dois sentidos, duas direções: 1. A opacidade desperta, aparece, começa a existir, se apresenta. 2. O sujeito desperta para o fato de que há essa opacidade, confronta-se com ela.

 

1 Lacan, J., Seminário 24 “L´insu que sait de l´une-bevue s´aile ´a mourre”, aula de 11 de janeiro de 1977, inédito.
[2] Freud, S., “Carta a su hijo Martin, del 8/8/14”, Sigmund Freud. Cartas a sus hijos, Paidós, Buenos Aires, 2012.
[3] Freud, S., “A perda da realidade na neurose e na psicose ” (1924). Obras psicológicas completas, vol. XIX, Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, p. 229.
[4] Freud, S., “Neurose e psicose (1923). Obras psicológicas completas, Vol. XIX, Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, p. 187.
[5] Lacan, J., “Respuesta a Marcel Ritter. Jornada de carteles en Strasbourg”. 26 de enero de 1975, http://www.psicoanalisisinedito.com
[6] Lacan, J., “Reseña con interpolaciones del Seminario de la Etica”. Ediciones Manantial, Buenos Aires, 1988, p. 22. Devo esta referência a Jesus Santiago, de seu texto “Clínica do despertar impossível: sonho, eternidade e tempo”, apresentado na EOL no dia 29 de abril de 2019, na Noite do Argumento do XII Congresso da AMP.
[7] Idem.
[8] Idem.
[9] Idem.
[10] Koretzky, C., Sueños y despertares. Una elucidación psicoanalítica. Grama, Buenos Aires, 2019.
[11] Lacan, J., “Propos sur l´hysterie”. Pronunciado em 26 de fevereiro de 1977, inédito.
[12] Lacan, J., Seminário 24 “L´insu que sait de l´une-bevue s´aile ´a mourre”, aula de 17 de maio de 1977, inédito.
[13] Lacan, J., Seminário 25 “O momento de concluir”, aula de 15 de novembro de 1977, inédito.