Scroll to top

“Um rio de fogo”. A diferença absluta de Freud


lacan21 - 9 de novembro de 2019 - 0 comments

Thereza Salazar. “Entreato” – Tinta autoemotiva s. Metal industrial. São Paulo.

Thereza Salazar. “Entreato” – Tinta autoemotiva s. Metal industrial. São Paulo.

Patricia Tagle Barton – NEL-AMP

“O uso, o valor de uso do sonho, eis o que

nos coloca no caminho de pensar nossa prática

a partir do que o sinthoma do Um comporta

de absoluto, a partir da diferença absoluta do Um…”

Angelina Harari 1

Abertura em três movimentos

Freud, ainda

Certamente, em se tratando de Freud e dos sonhos, referimo-nos sempre à Traumdeutung,2 obra inaugural. O sonho – os sonhos – nos disse, são a via régia, a porta do inconsciente. Freud toma aí, um verso de Virgílio como epígrafe: «Flectere si nequeo superos, acheronta movebo». Avançou nessa via com uma vontade inquebrantável.

Lacan, ainda

“Quando o esp de um laps […] o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente. O que se sabe, consigo”.3

De um real paradoxal

Que “esp”, que “laps”, então, é aquele que estreita essa via – a do inconsciente – a da experiência do inconsciente, que vai desde os sonhos e sua interpretação, desde seu alcance de sentido a este ponto “zero”, o da parada, até mesmo esgotamento da interpretação? Que utilidade, ainda, dos sonhos na análise, nessa e para essa parada?

Freud, e o uso de seus sonhos

“Quem soube melhor que ele, declarando seus sonhos, desfiar a corda em que desliza o anel que nos une ao ser, e fazer luzir entre as mãos fechadas que o passam de umas às outras, no jogo do anel da paixão humana, seu breve fulgor?” – assinala Lacan a propósito de Freud, na “Direção da cura e os princípios de seu poder”.4

De fato, Freud fez um uso de seus próprios sonhos, inclusive um de sua filhinha – (como não recordar a menininha submetida a uma dieta por indigestão, sonhando com poder ter para si, os frutos proibidos?!) – em seu desejo férreo por avançar em seu descobrimento e transmiti-lo, apontando em ato para essa outra cena, a que estava em jogo para ele mesmo.   

Como, por exemplo, o famoso sonho da “injeção de Irma”5, tão mencionado, estudado e comentado e, a propósito do qual, Lacan assinalava, no início de seu ensino, que:

Há, pois o aparecimento angustiante de uma imagem que resume o que podemos chamar de revelação do real naquilo que tem de menos penetrável, do real sem nenhuma mediação possível, do real derradeiro, do objeto essencial que não é mais um objeto, porém este algo diante do que todas as palavras estacam e todas as categorias fracassam, o objeto de angústia por excelência.6

Ou o sonho da “monografia botânica”,7 muito notável também e no qual Freud não poupa nada – pretende ser exaustivo em sua análise – e ainda nos transmite, mais além do texto e do ânimo que o inspira e o causa, esse real em jogo, esse nó inextrincável que ele mesmo chamou “o umbigo do sonho”; sua própria opacidade, também.

No primeiro capítulo e nas primeiras linhas da Traumdeutung, Freud enuncia sua tese: que encontrou uma “técnica” – leia-se um saber fazer – que permite tomar os sonhos não só como um produto psíquico “provido de sentido”, senão, além disso, como fruto de uma série de processos que testemunham a “natureza das forças psíquicas, por cuja ação concomitante ou mutuamente, oposta os sonhos são gerados”.8

Dedica-se a isso, a examinar, formalizar, dar conta desses processos. E a assinalar, ao mesmo tempo, um ponto de limite à análise possível dos sonhos e à sua interpretação.

Freud, e a borda do real

“Preciso contar-lhe um sonho agradável que tive na noite seguinte ao funeral”, escreve Freud a Fliess na carta 509, datada em Viena em 2 de novembro de 1896 – “Eu estava num lugar onde li uma placa: Pede-se que você feche os olhos”.

Trata-se de um sonho que Freud teve nas circunstâncias da morte e do enterro de seu pai. Freud acrescenta: “Reconheci imediatamente o local como sendo a barbearia onde vou todos os dias. No dia do funeral, fiquei esperando minha vez e, por isso, cheguei um pouco atrasado ao velório. Na ocasião, minha família estava descontente comigo por eu ter tomado providências para que o funeral fosse discreto e simples […]. Estavam também um pouco ofendidos com meu atraso.”10 “O sonho, portanto, provém da tendência à auto-recriminação que costuma instalar-se entre os que permanecem vivos”, assinala Freud algumas linhas abaixo.

Não é tanto o conteúdo daquele sonho que Freud nos legou (nem tampouco as linhas que Freud acrescenta a respeito, que são por certo memoráveis), senão a enunciação que o precede: – “Preciso contar-lhe um sonho agradável11, o que chamou minha atenção. Pois fica claro para mim que o sonho, em si mesmo, não encerra nada de “lindo” –, pelo contrário. Bastaria por si só para produzir angústia.

Se o pensamos/lemos bem, é um sonho comparável por sua contundência, ao sonho de “pai, não vês que estou queimando?”, que tanto nos dá o que falar. Ainda que neste caso não se trate do filho “chamando” o pai, senão de um pai/alguém se dirigindo ao filho (?), ao Outro (?), ao impessoal “se…” desse “pede-se” que se esquiva, e ao qual, o sujeito do sonho mesmo apela (?), a esse real.

Então, o “lindo” – me pergunto – em que radica? E o que pode “alegrar” tanto a Freud, no relato que faz desse sonho a Fliess? O que, senão esse “mais além” que o sonho indica, como um aviso, e no qual Freud mesmo cifra o entusiasmo de seu encontro e seu desejo inquebrantável?

Um sonho, afinal, é apenas um sonho, ouve-se dizer hoje em dia. Não significa nada que Freud nele tenha reconhecido o desejo? […] Pois é preciso ler a Traumdeutung para saber o que quer dizer o que Freud chama ali desejo” – assinala Lacan.12

Como não ver no uso que Freud fez de seus sonhos, um modo de abordar e bordear um real? O do desejo mesmo – nesse caso, o de Freud – como um real vivo? Lacan, nesse mesmo escrito, o nomeia assim, a respeito de Freud: um rio de fogo.13 A diferença absoluta de Freud?

Dejame que te cuente…”14

Assim se inicia a letra de uma conhecida e imortal valsa peruana, “La flor de la canela”, que, tal como a “velha ponte”, ainda balança como um sonho.

Certamente, desde o início dos tempos, o da humanidade falante, sonhamos. E os sonhos se contam, se “interpretam” e se cantam, também.

Não obstante, e para nós, a transferência inaugura esse cenário privilegiado no qual os sonhos e seu “relato” contam e são levados em conta, de outra maneira.

Algo se infiltra, se filtra, se trama, se fia, se “trança” no eixo e no uso dos sonhos em análise, sob transferência; nessa topologia moebiana que se sulca e faz sulco no relato mesmo, nas palavras que veiculam o regime da satisfação em jogo; a verdadeira “outra cena”, a que Freud apontou desde o início, e em ato. Nesse trajeto possível que leva do sonho a um despertar, instantâneo, talvez. Mas possível. Não sem efeitos. Não sem um “breve fulgor” que se itera. Não sem um desejo vivo que se pode transmitir e se move.

Um rio que flui.

Tradução: Ruskaya Maia

1 Harari, A., “A diferença do sonho”. https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/la-diferencia-absoluta-del-sueno.html
2 Freud, S., “A interpretação dos sonhos” (1900).  In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  v.  IV e V. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
3 Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do  seminário 11”. Outros escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2003, p. 571.
4 Lacan, J., “A direção da cura e os princípios de seu poder”. Escritos. , Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 648.
5 Freud, S., “A interpretação dos sonhos” Op. cit., Vol. IV, pp.179 e ss.
6 Lacan, J., O Seminário, livro 2, O eu na teoria de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,  1987, p. 209.
7 Freud, S., “A interpretação dos sonhos”. Op. cit., pp. 200 e ss
8 Ibid. p.39
9 Masson, Jeffrey M., “A Correspondência Completa de Sigmund Freud a Wilhelm Fliess – 1887-1904”, Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, p. 203.
10 Ibid., p. 203.
11 Nota da tradução: no original, a frase é “Tengo que contarte un lindo sueño […]”
12. Lacan, J., “A direção da cura e os princípios de seu poder”. Op. cit.,p. 626.
13. Ibid., 648
14. Nota da tradução: Deixa-me contar-te