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Então, é necessário clinicar


lacan21 - 18 de maio de 2023 - 0 comments

Candela Méndez (EOL Seção Córdoba)

A psicanálise é uma prática a ser sempre reinventada, em um esforço de leitura dos axiomas da época atual. Assim, o impulso que leva a acreditar que se é o que se diz, modo contemporâneo pelo qual se apresenta a ilusão de um, é contrária à passagem freudiana que o inconsciente não sabe o que diz, nem quem é, nem sabe o que quer.

Este sonho de civilização, uma espécie de sonho de auto engendramento, não afeta apenas os corpos, mas também carrega certos ideais de igualdade e empreendedorismo democráticos.

Encontramo-nos, portanto, numa posição discursiva em que se sobrepõem uma identidade, um modo particular de gozo com um eu que fala. Superposição que põe em questão a ideia do sujeito analisante.

Sendo assim,”Como fazer na prática analítica, em um mundo no qual se quer que a interpretação seja excluída pelas leis, ou seja, que desapareça como se nunca tivesse existido?”[1] Ou ainda: “Como devemos falar, agir, pensar diante de um Outro social, que, com as melhores intenções (das quais o inferno está cheio), deseja a liberdade de direitos para todos, e no entanto, a restringe, faz calar, reprime?”[2]

A aposta do Centro de Pesquisa e Estudos Clínicos (CIEC)[3] foi retornar, depois da pandemia, e de forma presencial, ao Hospital Neuropsiquiátrico Provincial, para falar da clínica.[4] Fazer uso de um significante comum no sentido comunitário, com os profissionais, os adeptos da psicanálise, psiquiatras e enfermeiros, para localizar problemas atuais e seus possíveis tratamentos.

Como falar?

A fala é um movimento instável, também é tagarelice estilizada feita de palavras, que cada ser falante faz homofonia e equivoca numa língua, e que por sua vez, imagina que diz. Sabemos que se a psicanálise é um convite a falar, é para realizar a experiência de escutar a ressonância da lalangue no corpo, ressonância que só acontece a partir de uma interpretação da qual se desprende um real quando essa experiência, em sua contingência, produz equívocos. Nisso, a sessão analítica se assemelha à poesia.

É interessante como Lacan, em sua conferência – Abertura da Seção Clínica – em 5 de janeiro de 1977[5], refere-se à clínica psicanalítica como o que se diz em uma análise[6] e, no mesmo movimento, acrescenta: então, é preciso clinicar.[7]

Clinicar

Efeito de sua ruptura com a clínica da psiquiatria clássica cujo suporte é o olhar e a observação, a clínica psicanalítica tem menos que ver com o fazer do que com o dizer. Além disso, ela se apoia no impossível de suportar.

Trata-se, então, de uma clínica do encontro e do discernimento das coisas que importam no real, da qual se aproxima um dizer em sua ex-sistência com os ditos.

Mais adiante, nessa mesma conferência, Lacan propõe essa clínica como o que nos ajudará a reinterrogar a experiência freudiana. Vai dizer que o inconsciente de que se trata na clínica não é o de Freud. Valorizará o campo freudiano mas não o inconsciente em sua vertente do querer dizer.

Por isso, é necessário esclarecer o inconsciente. Sua maneira de clinicar tem a ver com o real do inconsciente que não é um todo, nem um universo, mas troço ou borda, que é também resto, e que poderá ser isolado como fora de sentido, uma vez que se tenha consentido em desbaratar o sintoma de seu aparato linguageiro de ficções fantasmáticas e efeitos cintilantes de verdade.

Situar as coisas deste modo implica introduzir-se numa dimensão da clínica na qual a palavra se reduz à sua materialidade, à percussão de elementos da língua tomados isoladamente, da qual o sintoma se torna sua cristalização.

Mas, clinicar não é apenas o que se diz em uma análise. Com “clinicar”, Lacan quer questionar os analistas, levá-los a dar suas razões para que se deem conta daquilo que, em  sua prática, há  de imprevisível, num esforço de transmissão, no qual o praticante poderá se apoiar, para reforçar o que tem de sua própria análise, ou seja, “saber não tanto para que ela serviu, mas de que se serviu”.[8]

 

Tradução: Késia Ramos
Revisão: Maria Rita Guimarães

[1]  Seldes, R., “Discurso de Abertura”. Proferido na cerimônia da permutação do Bureau FAPOL. Disponível em https://fapol.org/pt . Acessado em 16/04/2023
[2]  Ibidem.
[3]  Centro de Pesquisa e Estudos Clínicos associado ao Instituto do Campo Freudiano, na cidade de Córdoba, Argentina.
[4]  Abordado no Seminário Anual CIEC: Cinco Problemas Clínicos. Realizado durante o ano de 2022.
[5]  LACAN, J. Abertura da Seção Clínica (1977), Opção Lacaniana. no. 30, Abril, São Paulo: Edições Eolia, 2001,p. 6.
[6]  Ibidem. (grifo da autora).
[7]  Ibidem.
[8]  Lacan, J. “Talvez Vincennes…”, (1975), Outros Escritos, Zahar, 2003, p. 316. Grifo da autora

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