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Meninas modelo- modelo: o fora da série no século XXI


lacan21 - 25 de outubro de 2016 - 0 comments

Natalia Monserrat. Proyecto “Aclarescar”. Fotografía experimental.

Natalia Monserrat. Proyecto “Aclarescar”. Fotografía experimental.

Alejandra Glaze

Nosso próximo ENAPOL é uma excelente oportunidade para trabalhar sobre o modo em que os sujeitos se enredam e desenredam-se nos assuntos de família no século XXI, entre a causalidade significante e o encontro com o real. Quer dizer, pela identificação imaginária e sua falta, essa irrupção de gozo que erige o destino do sujeito. Ou seja, de que maneira o caldeirão pulsional arma a sua montagem a partir de uma estrutura de linguagem, com o paradoxo que isso significa.

Mas vamos por partes. Há uma diferença radical entre o traço unário e o “Há do Um”, enfatizando que não há repetição primeira, quer dizer, não há possibilidade de identificação imaginária sem sua falta. É o Um onde não se trata da relação ao Outro, um Um separado do sentido. No Seminário 19 dirá mais: “Aí onde ao há relação sexual, Há Um” (1).

O Um da repetição, absolutamente sozinho como traço desarticulado, se escreve com qualquer coisa contanto que seja fácil repetir como figura; para o ser falante, nada mais fácil que reproduzir seu semelhante ou seu tipo (por ex., uma menina modelo). A figura é a marca. E assim, o antigo modelo óptico de Lacan refere-se ao fato de que o sujeito se reflete no traço unário e, a partir disso situa-se em relação ou Eu ideal. Isto leva ao primado do Outro, do lado do amor e, por conseguinte aos assuntos de família, mas deixa uma marca daquela “comemoração de irrupção de gozo” que veicula o traço unário em sua iteração.

Comecemos pelo mais simples. O que é um modelo? É um objeto que se fabrica em série, e que tem as mesmas características daqueles que pertencem ao mesmo tipo. Um Todo, um modo de fazer massa a maneira freudiana, a mesmidade e a série mas, que não pode ser pensado sem sua contrapartida de fracasso que se acolhe como mal-estar. Um suposto “para todos” que produz coletivo imaginário de todos nós. Manifestações imaginárias do comum que dissolvem a singularidade no Todo, diluindo a possibilidade da diferença.

O modelo, segundo Lacan, “por ser um fato de escritura, situa-se no imaginário” (2), fundando sua consistência. Então, podemos acrescentar que os modelos apelam ao universal e promovem os particularismos. Por exemplo, as meninas modelo do século XIX e XX.

Imagens que enganam e seduzem, discursos que comandam o que deve ser a relação sexual, semblantes, artifícios, fatos culturais, civilizatórios.

Até aqui, primado do Outro, articulação do real que reprime a falta de relação sexual, onde a neurose faz o seu esforço para fazer existir a relação sexual. Porém sempre que há um modelo, há sintoma, uma vez que o sujeito fracassa na tentativa de estar à altura desse modelo.

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Nem sequer a ordem doméstica dos Freud se liberou dessa dupla incidência. E quem melhor nos ofereceu os dados mais precisos disso foram os biógrafos de Anna Freud. A transformação da pequena Anna (a qual seu pai gostava de chamar de “Demônio Negro” –Swarzer Teufel-, pelo seu caráter indócil e caprichoso) em uma ajuizada adolescente dedicada a predileções literárias, é um paradigma clínico dos alcances e dificuldades de uma boa educação do século XIX.

Uma das leituras favoritas de Anna eram os livros da Bibliothèque Rose, uma série escrita por Sophie Rostopchine, Comtesse de Ségur (3). Em um deles, Sophie de Rén é uma menina de quatro anos, descrita como caprichosa e fantasiosa, coquete e imprudente, capaz de realizar as piores bobeiras, cometer os piores excessos, e atuar com uma crueldade próxima ao sadismo.

Verdadeiro “demônio negro”, essa menina vive sua infância com total liberdade, ao contrário de suas primas, meninas modelo, encarnação da razão e a sabedoria burguesa. A trilogia a qual pertence este conto, composta por Les Petites Filles modèles (1858), Les Vacances (1859), y Les Malheurs de Sophie (1860), constitui um verdadeiro discurso educativo utilizado como leitura obrigatória para as crianças das famílias educadas segundo o modelo da Europa em princípios de 1900, cujo objetivo moral é demonstrar, por um lado, que a desobediência produz a punição, e por outro, que todo erro pode ser perdoado. Sem dúvidas, época do Outro em todo o seu poder.

Ao cumprir 18 anos, Anna foi levada a Merano, onde supostamente se recuperaria de uma afecção física, e desde então escreve cartas nas quais aparecem os primeiros indícios do seu compromisso subjetivo, e o que Freud definiu como a sua psicastenia: uma redução intelectual ou cognitiva produzida por causas emocionais, e que descreve em suas cartas ao pai: “[…] me perguntei de que poderia tratar-se, pois não estou realmente doente. De certa forma isso irrompe em mim e logo sinto-me muito cansada e me preocupo por todo tipo de coisas que em outro momento são perfeitamente naturais […] Mas quando tenho um dia pesado tudo parece-me mal; por exemplo, hoje não posso compreender como as vezes tudo parece-me tão pesado. Não quero voltar a sentir isso, pois desejo ser uma pessoa razoável ou pelo menos chegar a sê-lo, mas não posso prestar-me ajuda estando sempre sozinha […](4).

Não conhecemos a resposta de Freud a essa carta, mas muito depois lhe escreveu: “Pelos livros que tens lido terás compreendido que eras excessivamente ciumenta e inquieta e que estavas insatisfeita porque te afastaste desde criança de muitas coisas das que uma moça feita não se assustaria. Observaremos uma mudança quando já não te afastes dos prazeres da tua idade quando gozes alegremente daquilo que as outras moças gozam. Não é possível ter energia para se dedicar a interesses sérios si se é ciumento demais, muito sensível e permanece longe da natureza e de sua própria vida; então a gente sente-se incomodado pelas coisas que deseja (5).

Em uma carta a Lou Andreas Salomé, o dia 5 de maio de 1924, Anna lhe escreve: “O motivo para continuar analisando-me foi o comportamento não demasiado honorável da minha vida interior: ocasionais intromissões indecorosas das fantasias misturadas com uma intolerância cada vez maior – as vezes física tanto quanto mental – das fantasias de flagelação e das suas consequências (quer dizer, a masturbação) das quais não podia prescindir” (6).

Mais adiante, em uma outra carta diz-lhe: “Eu sei que é vergonhoso, principalmente quando me vem entre um paciente e outro, mas também é algo belo que me produz um grande prazer” (7).

Até aqui as fissuras de uma menina modelo do século XIX pela mão do próprio Freud.

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Vamos agora a uma menina modelo do século XX. Ana Lydia Santiago, quem em um dos seus depoimentos (“Separar-se do mito: o luto pelo objeto de amor”) (8), propõe o seguinte: “Em consonância com a clássica tríade da clínica analítica –inibição, sintoma e angústia- , comprovei que o sintoma manifesta-se em forma de cólera e ciúmes afetos insensatos para quem desde a infância, tentava identificar-se com uma menina modelo, e que em outro testemunho (“Amor a primeira vista”), reafirma do seguinte modo: “efeitos contraditórios para uma menina que quer ser uma menina modelo e alcançar o bem dizer” . Isto se reitera em relação ao mito As três cabeças de ouro, e como cada uma das duas meninas responde perante as exigências do Outro: “A primeira menina, considerada uma boa filha, o bastante afetuosa com o pai, atende rapidamente as solicitações de cada uma das três cabeças, e consequentemente, é beneficiada com o dom da bondade e com um alento suave, o que lhe possibilita ao falar, lançar pedras preciosas pela boca. A segunda menina, filha caprichosa, mais ligada a mãe, rechaça o pedido de favores das três cabeças, e então lhe reservam uma vida mais difícil, literalmente um caminho de espinhos, que ferem a sua pele e tornam sua aparência pouco atrativa, além de um alento horrível, que a leva ao falar, a lançar cobras e lagartos pela boca” (9).

Podemos ver aqui aquilo que descreveríamos rapidamente como uma cisão, para o colocar em termos freudianos. Cisão entre aquilo que se encontra no registro da representação, e aquilo que entra dentro do marco da vontade de viver, a maneira própria de dizer isso que empurra e anima um corpo mortificado, preso na fantasia e preso do traumatismo da alíngua.

O gozo revela-se na menina modelo que é Ana Lydia, produzindo-se como o seu reverso, a cólera e os ciúmes; de arrebatada a arrebatadora; da mãe boa e sacrificada, a fúria do amor, ao tiro de fuzil, ao amor a primeira vista que pode ser ela mesma, aquele que indica o som de um destino de morte para o sujeito, si continuar sendo conduzida por aquilo que a determina do lado do significante.

É o trabalho da análise orientado por um analista que vai mais além do pai, o que pode separar Ana Lydia desse modelo-destino que implicava o sacrifício ao amor ao Outro, recobrindo sua própria dimensão gozante, aquilo que toma corpo desde o pulsional, esvaziando o efeito primordial do simbólico, concebido como traumatismo e mortificação.

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A menina modelo é um modelo do que significa a repressão na neurose, e de como é descreve essa relação subjetiva com a pulsão, a maneira como o saber sobre o gozo que fica á margem da civilização retorna como mal-estar. É o discurso do mestre em sua produção da castração simbólica. Mas no Seminário 19 Lacan anuncia o discurso do mestre up to date, do mestre último modelo, “e das meninas modelo-modelo que são sua progenitura” (10). E coloca: “Mas não todas são modelo-modelo”. O que é esta menina modelo-modelo?

Podemos pensar a esse amo up to date como o mestre que ordena gozar de nossa época? Uma época marcada por uma autoridade do pai escavada pela ação conjunta da decadência da dimensão trágica do pai e a multiplicação de formas de vida conjugal. Seguindo a Miller, que o Outro não existe quer dizer que o Um é o que existe, explicando assim o surgimento de novos mestres, mais consistentes e dispostos a acabar com a diferença. É a primazia do Um na dimensão do real. Neste sentido, a ordem simbólica não seria outra coisa que a iteração do Um no real, que não comanda nenhuma identificação mas abre a via à destituição subjetiva, e que Miller descreve como sujeitos desinibidos, neodesinibidos, desorientados, desbussolados, onde o objeto se impõe ao sujeito, na “insistência de uma indecente intimidade”. Trata-se de um Um diferente daquele que unifica uma classe, distinto ao que impõe o modelo da menina modelo “que fascina o pai” (11).

Essa reduplicação da menina modelo na menina modelo-modelo que aporta Lacan, é ilustrada por Miller (12) no mesmo comentário ao testemunho de Ana Lydia, quando se refere á anorexia como novo modelo da época, esta vez ligado ao gozo e não ao Ideal que esconde um gozo, nessa iteração do Um, e não do lado do semelhante. Mas nessa mesma aula Lacan esclarece: “Não todas são modelo-modelo”, “e isto faz época” (13), enfatizando esse deslocamento ao lado feminino, que convida a viver a pulsão de maneira singular, não convocando a ânsia classificatória, nem a série, nem aos universais, nem aos grandes Ideais.

Hoje a aposta tem mais a ver com os corpos e seu gozo, que com a ideologia ou com a encarnação de um significante mestre, com a consequência do colapso do regime do Outro. Já não se trata do que o objeto te fará ser, senão do estabelecimento dos particularismos do gozo, os modos de gozo, onde muitas vezes o corpo “já não obedece” a aquelas premissas identificatórias, mas aos corpos liberados ao seu próprio gozo solitário, onde fica a descoberto, sem véu, a inexistência da relação sexual.

É assim que alguns jovens, hoje em dia, produzem novas identidades na procura de desembaraçar-se da palavra do pai, de desembaraçar-se dos ideais que vem do Outro. Por um lado, parecemos estar em um mundo em uma explosão de produtividade e inovação (nós diríamos tal vez, de invenções identitárias), mas por outro, essa capacidade de criação vê se capturada sistematicamente pelos tentáculos do mercado, desativando permanentemente essa invenção, essa criatividade convertida hoje em dia no combustível do capitalismo contemporâneo.

É esta orientação precisa para, nos enredos da pratica, abordar os assuntos de família do século XXI, época de uma incitação permanente a essa criatividade pessoal, à excentricidade e a busca de diferenças que, sem dúvida, não deixa de produzir cópias descartáveis do mesmo, levando a menina modelo, a ser uma menina modelo-modelo, quer dizer, um Um que itera, não sendo modelo de nada, e por fora da lógica identificatória, evitando deste modo os intrincados enredos dos assuntos de família.

Os esperamos!

Tradução Laura Fangmann

 


(1) Lacan, J., El Seminario, Libro 19, …o peor, Paidós, Buenos Aires, 2012, p. 150.
(2) Lacan, Jacques, Seminario 22, Clase 3, del 17 de diciembre de 1974. Inédito.
(3) Sophie Rostopchine, Comtesse de Ségur perpetuaba en sus obras la tradición literaria moralizadora, con cuentos como Contes de fées (1857), l’Auberge de l’AngeGardien (1863), Mémoires d’un âne y Général Dourakine.
(4) Young-Bruehl, Elisabeth, Anna Freud, Emecé editores, Buenos Aires, 1991, p. 54.
(5) Ibid., p. 54. La bastardilla es mía.
(6) Ibid., p. 111.
(7) Ibid., p. 110.
(8) Santiago Ana Lydia, “Separar-se do mito: el duelo por el objeto de amor”, Volumen del VIII Congresso de la Asociación Mundial de Psicoanálisis, El orden simbólico en el siglo XXI. No es mas lo que era. Que consecuencias para la cura ¿, Grama ediciones, Buenos Aires, 2012, p.60
(9) Santiago, Ana Lydia, “Flechazo (Coup de fodre)”, en Lacaniana 12, Revista de la Escuela de la Orientación Lacaniana, Gramaediciones-EOL, Buenos Aires, 2012, p. 105
(10) Ibid., p. 106.
(11) Lacan, Jacques, El Seminario, Libro 19, …o peor, op. cit., p. 167 Lacan, Jacques, El Seminario, Libro 19, …o peor, op. cit., p. 167
(12) Miller, Jacques-Alain, Comentario a “Separarse del mito: el duelo por el objeto de amor”, de Ana Lydia Santiago,Volumen del VIII° Congreso de la Asociación Mundial de Psicoanálisis, El orden simbólico en el siglo XXI,op. cit., p. 66.
(13) Ibid., p. 69.
(14) Lacan, Jacques, El seminario, libro 19, … o peor, op cit, p. 167