Maria Josefina Sota Fuentes
Desde os primórdios da psicanálise, os assuntos de família tomaram conta da cena analítica a ponto de Freud fazer do mito de Édipo um complexo universal instaurado no cerne do desejo humano, berço do trauma e dos laços libidinais onde se jogam as forças antagônicas inconscientes dos sintomas e inibições, fixando os modos de satisfação da pulsão e a trama de um destino. Nesse terreno, onde a castração também joga sua partida, edificam-se as identificações sexuais assegurando formas de socialização baseadas nos semblantes da autoridade patriarcal, que já se encontrava, contudo, em franco declínio.
Essa é a interpretação de Lacan em 1938 ao relativizar o caráter universal do Édipo freudiano, destinado a perder suas forças tanto mais o afrouxamento dos laços de família e o declínio da imago paterna se tornariam uma realidade frente ao avanço das novas formas de socialização na civilização. Com efeito, a “monarquia doméstica”[1] – segundo a expressão luminosa do célebre historiador Philippe Ariès – teria seus dias contados. Fortalecido com o advento dos tempos modernos quando se reforçou o poder patriarcal sobre a esposa e os filhos e a devoção ao pai passou a ser prescrita nos livros de civilidade, o patriarcalismo declina com o enfraquecimento do poder do Rei e da Igreja substituídos pelas relações horizontais que as leis da República exigiriam.
Mas é a “hipermodernidade” que finalmente desconstrói o que por muito tempo foi um fato natural inquestionável, a saber, a família como a instituição baseada no casamento de um homem com uma mulher com a finalidade de criar os filhos. Revela-se por fim o seu caráter ficcional e a separação de duas instituições, a do casamento e a da família[2]. Desconstruídas as categorias homem/mulher, diversificam-se os gêneros e as modalidades do laço matrimonial, quando elas ainda existem. Na sociedade do individualismo onde se multiplicam os celibatários e parceiros virtuais, não tardou a surgir a bizarrice do “casamento consigo mesmo”, ou outras variantes da família monoparental que prescinde dos laços de aliança com um cônjuge para gerar filhos.
O mestre contemporâneo outorga ao saber científico e ao campo jurídico a autoridade paterna perdida, criando novas ficções sobre a criança. O que estará destinado aos filhos da ciência legislados pelo poder jurídico?
A psicanálise, que nasceu da brecha dos efeitos do declínio do poder patriarcal na subjetividade, extravia-se, contudo, a cada vez que adota a política de dissolver a “crise psicológica” [3] à qual Lacan então se referia, restabelecendo tal poder em suas mais variadas versões, como fazem as práticas psicoterapêuticas.
Nascer do mal-entendido
Enquanto a filha, Anna Freud, dedicou-se a educar as pulsões fazendo do Eu e do que entendia ser o “princípio de realidade” os grandes aliados do analista, investigando o que acontecia no entorno familiar na análise com crianças, Freud ficaria com o grande feito da psicanálise: o de “explorar o mal-entendido – como afirma Lacan – com, ao fim, uma revelação que é a fantasia”[4].
Foi na inquietante intimidade familiar dos anos 20 que Freud se deparou com a estranha ficção do Bate-se numa criança, revelada a partir da análise de sua própria filha. O Você me espanca, como mostra Lacan[5], indica a mensagem que o sujeito recebe de forma invertida sob a modalidade do gozo do Outro, ou seja, o suporte da fantasia que só se sustenta a partir da suposição de que o pai – bem distante dos ideais adaptacionistas que sua filha iria teoricamente defender – goze espancando-a.
Ainda que as lembranças da repressão familiar não sejam verdadeiras, seria necessário inventá-las – insiste Lacan em 1973 ao se referir à ordem familiar e ao mito edipiano como ficções que consistem na “tentativa de dar forma épica ao que se opera pela estrutura”[6]. Assim, as figuras do pai e da mãe não correspondem a uma realidade natural biológica, aos genitores, mas ao mito libidinal necessário construído diante do impossível – o buraco do traumatismo do nascimento relativo à origem do falasser.
Certamente a língua que cada um fala é um assunto de família uma vez que o lugar do Outro da linguagem é encarnado por aquele que se ocupa do infans. Por isto, como diz Miller, “a família no inconsciente é primordialmente o lugar onde se aprende a língua materna”[7] – fato que, no entanto, não traduz nenhuma relação de diálogo e complementariedade entre a genitora e a prole. É claro, diz Lacan, “que é pelo modo como a lalíngua foi falada, e também, entendida por fulano ou beltrano, em sua particularidade, que alguma coisa, em seguida, reaparecerá nos sonhos, em todo tipo de tropeço, em todo tipo de formas de dizer”[8]. Mas a lalíngua materna não comunica nada, não constitui um patrimônio, apenas se motérializa[9] como puro acontecimento de corpo como um sintoma sem entregar a chave do mistério da existência do falasser, que já nasce exilado da não-relação entre os S1 sem-sentido, que, entretanto, se chocam com o corpo, batem[10] produzindo gozo.
Wanted or unwanted, nascer como desejado pelo falasser corresponde ao único traumatismo do nascimento e que implica o fracasso de estrutura, um ponto de real relativo à origem subjetiva de nascer de um desejo, de uma linhagem cujos infortúnios derivam do próprio mal-entendido da linguagem.
A versão épica do filho como o falo prometido ao desejo do Outro, cuja significação seria assegurada pelo Nome-do-Pai para a criança que dele pode se servir, encontrando uma razão para o desejo que a engendrou, depara-se contudo, com seu limite. Nem sempre se conta com o véu do amor – ser a única amada pelo pai – para recobrir a fantasia do bate-se. É a contemporaneidade mesma que termina por desvelar o fato de estrutura[11]: a condição do filho como um objeto resto de um desejo, a parte perdida materializada pelo objeto a com a qual cada um se separa do Outro. Como afirma Lacan,
O objeto a é o que são todos vocês, na medida em que estão aqui enfileirados – abortos do que foi, para aqueles que os engendraram, causa do desejo. E é aí que vocês têm que se orientar, a psicanálise lhes ensina isto.[12]
Resta, inexoravelmente, sejam quais forem as ficções que sustentam o desejo que nos deu origem, o ponto de real em cada um como aborto que decai da decifração do desejo do Outro e resiste às construções simbólicas e imaginárias que poderiam responder ao mistério da vida. Dor de existir no império da linguagem frente a qual somente o gozo órfão do falasser lhe assegura o seu singular destino no mundo. É o que finalmente lhe permite responsabilizar-se pelo seu gozo sem atribuir ao Outro parental a culpa do estrago.
Às versões do pai, o equívoco da père-version, acrescentam-se as figuras da mãe que seria responsável pelo estrago subjetivo, como o achado clínico que surpreendeu Freud por sua preponderância nas análises das mulheres:
[…] nesta dependência da mãe, encontra-se o germe da ulterior paranoia da mulher. Parece, com efeito, que este germe radica o temor – surpreendente, mas invariavelmente encontrado – de ser morta (devorada?) pela mãe.[13]Com efeito, na operação de separação a primeira resposta que a criança dá ao enigma do desejo do Outro parental, cujo objeto é desconhecido, diz Lacan[14], é a sua própria perda e que dá origem ao fantasma do próprio desaparecimento, da morte interpretada como desejo do Outro. Assim, o fato de estrutura – ser aborto de um desejo – é interpretado como má vontade de um Outro maligno que será tanto mais paranoide e persecutório quanto maior o efeito do rechaço da castração.
Orientar-se segundo a ética do bem-dizer em relação à estrutura, ao inconsciente como mal-entendido, pode abrir as vias no dispositivo da análise de localizar a verdadeira causa que nos afeta, a causa ausente[15], o ininterpretável da castração que resta como um limite a toda ficção possível.
Ao incitar as ficções que tomarão corpo na transferência por meio da abertura ao saber inconsciente, o analista, com sua presença e seu dizer, encarnará ele mesmo o objeto ininterpretável, a incurável verdade de que não há relação sexual. Só assim poderá introduzir um objeto privilegiado não disponível no mercado: o objeto separador, causa de desejo. Desde que o analista suporte o paradoxo de seu ato e não se enrede, ele mesmo, nas assuntos de família.