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Novos sintomas, ainda o mal-estar


lacan21 - 30 de dezembro de 2021 - 0 comments

Rogério Barros – EBP/AMP

“A psicanálise muda. Isso não é um desejo. É um fato”[1]. Isso requer que não estejamos distantes dos novos modos de subjetivação tributários do discurso do mestre do nosso tempo. O novo mestre, união do discurso do capitalista com a ciência foraclui as coisas de amor, nos fazendo ver, de uma só vez, o declínio da função paterna e a degradação dos laços sociais. Enjoy x, sem restrição[2] é o slogan que condensa a ideologia de uma nova época. Passamos do tempo do mal-estar, resultante do conflito advindo da castração, para o tempo dos impasses frente ao gozo[3].

O mestre atual, ao recalcar o significante amo no lugar na verdade, modifica a relação do sujeito barrado com o objeto a. Se antes a divisão do sujeito se evidencia a partir da impossibilidade do saber alcançar a verdade, produzindo o objeto a como resto de operação simbólica, hoje sua divisão é causada pela oferta dos objetos sob as leis do mercado, aí onde o objeto a se encontra no zênite social[4].

Interpretar os fenômenos da civilização atual nos permite pensar um percurso que vai da interdição, restrição pulsional da era vitoriana em que Freud formula a causalidade sexual das psiconeuroses de defesa, à incitação do gozo pela via da profusão dos corpos da era do pornô. Mudanças ocorridas no campo social que nos permitem ver o declínio do Ideal e o consequente empuxo ao gozo[5].

A ausência de uma referência ao Outro simbólico, sinal da inoperância do Nome-do-Pai como organizador de gozo, não é sem efeito. Para apaziguar o mal-estar hoje, evidenciamos o uso de identificações imaginárias mutáveis “que funcionam como suplências em face do déficit simbólico”[6]. Tratam-se de novas nomeações que trazem à cena as dimensões imaginárias e reais do corpo. Nomes rígidos que, sem a mobilidade simbólica, permitem uma localização do gozo ao preço do enrijecimento de uma identidade do eu, e nos fazem interrogar sobre a função do equívoco significante que permitiria a abertura para que o inconsciente possa operar em um tratamento analítico.

Essas mudanças discursivas atuais fazem com que Lacan tenha realizado uma passagem de uma clínica descontinuísta, pautada na inscrição do Nome-do-Pai, à clínica continuísta, de conexão, borromeana, na qual o suporte não é mais a inscrição do Nome-do-Pai, mas “a foraclusão generalizada e a relação do sujeito com seu sinthoma”[7]. Desloca-se a ênfase anteriormente dada à estrutura, para nos inclinar à unidade elementar do sintoma como um modo de gozo, cujas invenções podem ser mostradas através do recurso à topologia.

Os novos sintomas são patologias sobre as quais o sistema classificatório estruturalista não consegue dar nome, denunciando a incapacidade da ordem simbólica de delimitá-los. Entretanto, se o envoltório formal se modifica, o núcleo do sintoma, que é o gozo, se mantém, de modo que não existe uma nova pulsão.

Se o sintoma freudiano, se estrutura como resposta a angústia, sinal de real, com a desordem simbólica[8] promovida pelo novo mestre mutante, passamos ao tempo da pluralização dos Nomes-do-Pai, permitindo uma localização do gozo não necessariamente advinda da via metafórica clássica. Ao pluralizar os Nomes-do-Pai, Lacan destitui o simbólico como único registro que trata o gozo, enunciando que imaginário e real, na sua duplicação, podem também suprir a falha do nó. Esses novos sintomas, distantes de se apresentarem como enigmas para os sujeitos, revelam-se como respostas.

Do mesmo modo que as línguas se modificam, também os discursos se transformam e os significantes mestres que orientam os efeitos de sentido comum surgem e declinam. Com a evaporação do pai e sua metáfora na cultura, evidenciamos a proliferação de S1s, nos permitindo ver não mais um mestre, mas muitos, cuja função é dar um tratamento ao mal-estar, servindo-se do pai ou compensando-o como outros nomes que permitam uma crença organizativa que dê consistência ao corpo[9]. Por efeito, os sujeitos contemporâneos, desbussolados, lançam mão de um significante-mestre lhes dê uma identificação comunitária. Fora da filiação paterna, agrupam-se pela via da identificação ao modo de gozo, formando bolhas de certeza que organizam o campo social onde proliferam bipolares, borderlines, anoréxicas, fibromiálgicas, além das identidades de gênero que aumentam exponencialmente, representadas no “mais” da sigla LGBTQIA.

No horizonte da queda dos semblantes, nos interessa politicamente estar atentos aos modos como novos pais, talvez nem sempre metafóricos, nos permitem vislumbrar o nosso alcance da subjetividade da época. Frente a derrocada do pai como Ideal, organizador do campo pulsional, que uma vez morto, instaura o regime do todo, com a sua evaporação da cultura hoje, estamos face a maquina do não-todo[10]. Novos modos de mal-estar se evidenciam, não pela falta, mas pelo excesso, apontando para uma nova clínica. Se a exigência de gozo renova o mal-estar na cultura, será necessário ver a partir de quais poros, hoje, podemos apostar na contingência do amor[11], frente a derrocada do pai, sonho freudiano.


 

[1]  Miller, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”. http://wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9.
[2]  Brousse, M.H. “Em direção a uma nova clínica psicanalítica”. Latusa digital, n. 30, 2007.
[3]  Miller, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2010.
[4]  Miller, J.-A. “Uma fantasia”. Opção Lacaniana, n. 42, 2005.
[5]  Portillo, R. “O declínio do ideal, a exigência de gozo”. Latusa digital. n. 16, 2005.
[6]  Tendlarz, S. E. “O inclassificável”. A variedade da prática: do tipo clínico ao caso único em psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007, p. 27.
[7]  Ibid., p.28.
[8]  Miller, J.-A. El lugar y el lazo. Buenos Aires: Paidós, 2013.
[9]  Brousse, M. H. “As identidades, uma política, a identificação, um processo, e a identidade, um sintoma”. Opção Lacaniana online, n. 25 e 26, 2018.
[10]  Santiago, J. “A máquina do não-todo e o sintomal como série sem-limite”. Correio, n. 85, São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021.
[11]  Racki, G. “Novos poros do amor”. Correio, n. 85, São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021.