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“O despertar entre gadgets e tóxicos. Uma questão da época?


lacan21 - 24 de junho de 2022 - 0 comments

Gustavo Moreno (EOL/AMP)

A irrupção pulsional coloca a prova as respostas que, na infância, foram estabelecidas diante da dimensão parcial e autoerótica do pulsional. Se algo caracteriza a época, como Jacques-Alain Miller soube indicar[1], é a “subida do objeto a ao Zênite social, que se apresenta como um parceiro privilegiado, tanto o tóxico, em sua intervenção desde o real, quanto o gadget, em seu status de cônjuge dileto do corpo falante. A questão a ser desenvolvida é se a presença precoce deles produz alguma particularidade para a época, tendo como referência as modalidades atuais de resposta.

Miller se pergunta: “O que é a adolescência na psicanálise?” [2], respondendo a três tópicos: -”A saída da infância”, indicando o acontecimento da metamorfose da puberdade e sua incidência como momento de “levar em consideração, dentre os objetos do desejo”;  -”A diferença dos sexos”, propondo contornar a diferenciação pré e pós-púbere, afirmando que a puberdade é uma escanção na história da sexualidade;  e -”A imiscuição do adulto na criança”, referindo-se a isso como uma reconfiguração do narcisismo, incluindo tanto as vicissitudes do Ideal do eu na neurose, quanto as contingências da configuração do narcisismo na psicose.

Freud isolou na puberdade diferentes elementos como centrais, a partir do rompimento que estabeleceu com o período anterior de desenvolvimento, ou seja, a latência. O empuxo da pulsão sexual, interrompe a condição polimorfa, parcial e autoerótica do espectro pulsional infantil. Embora, como consequência da travessia do complexo de Édipo, as pulsões, fiquem subordinados às condições de escolha do objeto, na puberdade requerem um rearranjo em torno do parceiro sexual, uma vez que se efetiva a possibilidade de descarga.

Lacan em seu “Prefácio a O despertar da primavera[3], dirá em referência ao trabalho de Wedekind, que a questão do que é “fazer amor com as mocinhas” não teria seu início «sem o despertar de seus sonhos”. Há algo do empuxo, que não é apenas determinado pelo empuxo “somático” da sexualidade, mas também pelo que do campo do Outro se articula e pulsa. A irrupção das mudanças somáticas é significada como a irrupção do real do corpo, que é um real que o púbere não pode impedir ou dominar. Ele dirá: “que o que Freud demarcou daquilo a que chama sexualidade faça um furo no real, eis como o que se percebe pelo fato de que, como ninguém escapa ileso, as pessoas não se preocupem com o assunto”.

O desenvolvido até aqui nos permite dizer que, inicialmente, a entrada na puberdade implica colocar a prova as respostas do fantasma, bem como os esboços de respostas sintomáticas, que o sujeito extraiu na infância.

Hebe Tizio propõe uma perspectiva interessante para pensar sobre a elaboração durante a adolescência chamando-a de sintomatização do gozo: “A puberdade é, nesse sentido, um impasse, na maioria das vezes turbulento, que levará a uma conclusão sobre como ‘tratar’ ao outro como parceiro sexual. Este tratamento em um sentido é invenção e em outro uma reedição corrigida e aumentada de uma escritura anterior. (…) A infância é o momento do tratamento do gozo autoerótico enquanto a adolescência é a sintomatização do Gozo que passa pelo Outro.”[4]

No entanto, na prática é comum constatar nos relatos dos pacientes que, no momento da puberdade, começou ou se aprofundou um uso estável e privilegiado de algum gadget ou tóxico. Se um dos problemas centrais que introduz a irrupção da puberdade é o fracasso das soluções autoeróticas e impõe uma elaboração sintomática do parceiro sexual…  Até onde o gadget e o toxico introduzem um impasse neste trabalho?

A conjuntura descrita para a puberdade parecia introduzir o assunto com certa candência entre os pares. Mas desde o século passado vimos como a mudança das coordenadas simbólicas estava diluindo os rituais que ajudavam a processar a passagem compartilhada rumo ao adulto.  Proponho pensar que, atualmente, com a presença estável do gadget ou do tóxico, a situação se torna mais complexa, uma vez que, se levarmos em conta o efeito de tamponamento que introduzem na economia de gozo, fazem um curto-circuito da eficácia causal do comando biológico na irrupção do que é urgente na puberdade.

É comum encontrar como determinante nos atendimentos de jovens, que há muito tempo passaram pelo desenvolvimento puberal, o aparecimento de episódios de angústia significativamente abrupta e deslocalizada, ou a irrupção de respostas da ordem do ato, seja sob o modo do acting-out ou da passagem ao ato. Quando localizamos as coordenadas antes do desencadeamento desses episódios, conjunturas equivalentes às descritas sobre a irrupção puberal, são vislumbradas.  Isso exige do analista uma escuta advertida de que, diante do fracasso do gadget ou do tóxico como defesa contra o real, geralmente há uma urgência no parletre equivalente à da puberdade, mas desencadeada em uma conjuntura singular, e que, através do desejo do analista como operador, torna-se possível assumir o lugar do gadget ou do tóxico como parceiro, promovendo o início do trabalho analítico orientado pelo sintoma.

 

Tradução: Nohemí Brown

[1]  Miller, J.-A., “Uma fantasia”. In: Opção Lacaniana, n. 42, janeiro de 2005, p. 8.
[2]  Miller, J.-A. “Em direção à adolescência” Conferência de encerramento da 3ª Jornada do Institut de l´Enfant “Interpretar à criança”, que ocorreu no Palácio do Congresso de Issy-Les-Moulineaux de marzo a partir de 2015. Publicada em português em: Opção Lacaniana, n.72, março 2016, p. 20-29.
[3]  Lacan, J., O Despertar da Primavera. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003, p. 557 e 558.
[4]  Tizio, Hebe. El enigma de la adolescencia. In: Púberes y adolescentes. Buenos Aires: Paidós, 2008, pág. 127