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O que ressoa entre escritos


lacan21 - 22 de outubro de 2017 - 0 comments

Alejandro Bilbao. UBA. “El niño”. Acrílico sobre tela.

Alejandro Bilbao. “A Criança”. Acrílico sobre tela.

Heloisa Prado Rodrigues da Silva – Telles – EBP – AMP

Alguns textos de Lacan, especialmente os datados de 1967, apresentados em Outros Escritos, podem ser tomados como uma série, não somente por estarem atravessados por temas comuns, mas, sobretudo, por permitirem uma leitura da posição de Lacan no que diz respeito a suas proposições para o analista e sua Escola e à psicanálise frente à civilização. Entrever isto provocou um entusiasmo em empreender uma leitura destes textos visando localizar e ampliar a interlocução existente entre eles. O entusiasmo que surge quando encontramos um pequeno achado em um escrito de Lacan, achado que se torna uma ferramenta, uma chave de leitura que relança não somente o entendimento da passagem do texto em questão, mas também o entendimento do contexto a partir do qual Lacan se dirigia aos psicanalistas de sua época.

Dentre estes textos de 1967, temos “Alocução sobre as psicoses da criança”1, cujas primeiras leituras, mesmo antes de sua publicação em Outros Escritos, marcaram minha formação, uma vez ser considerado uma referência essencial sobre a formalização de Lacan acerca da posição da criança como objeto em articulação com a fantasia materna – mesmo não entendendo absolutamente nada do que lia à época, naquela cópia em espanhol com o título “Discurso de clausura”, sua leitura a cada vez me instigava mais. Trata-se de uma fala de Lacan, em 22 de outubro de 1967, proferida como encerramento de um congresso organizado por Maud Mannoni– seu grande mérito foi reunir psiquiatras e psicanalistas “de todos os horizontes” em torno do tema das psicoses da criança. Ao tomar a palavra, de improviso, Lacan coloca em evidência o que pode presenciar nos debates travados ao longo dos dias do referido congresso: a ausência de um esforço em abordar teoricamente os aspectos ali tratados, nas várias intervenções, tendo-se como referência o que a descoberta freudiana nos legou – notadamente os conceitos de inconsciente e gozo.

Destaco, especialmente, este ponto – a ausência de uma articulação teórica – uma vez que pode ser considerado uma baliza para o entendimento do que virá a seguir.

Na primeira parte de sua fala, vemos Lacan travar um diálogo com os representantes da psiquiatria francesa e da antipsiquiatria –  Cooper e Laing, presentes neste congresso, inclusive – elencando aqueles elementos que aparentemente deram sustentação às propostas debatidas naquela oportunidade. Partindo de sua já conhecida contraposição à formulação de Henri Ey sobre “a loucura como um insulto para a liberdade”, Lacan chama a atenção para o fato de que o congresso conjugou questões referentes a três termos – criança, psicose e instituição – e criticará, a seguir, aquelas propostas que tentam, cada uma a seu modo, se sustentar em torno de uma articulação da criança, da psicose ou da instituição com o tema da liberdade. Dirige-se aos colegas ingleses, apontando a dimensão ideológica presente em uma prática onde “o sujeito é convidado a se proferir naquilo que eles entendem como manifestações de sua liberdade”. E continua Lacan: “Mas, não será esta uma perspectiva muito estreita, [….], será que essa liberdade, suscitada, sugerida por uma certa prática dirigida a estes sujeitos, não traz em si seu limite e seu engodo?”2.

Esta passagem é paradigmática por apontar, com precisão, o engodo a que pode levar uma prática, sobretudo se a ela corresponde uma inconsistência teórica –  e é isto justamente o que Lacan, a meu ver, busca denunciar nesta sua intervenção. E podemos acompanhar, em seguida, nesta mesma perspectiva, as consequências para uma prática que se apoia em uma “fantasia postiça – a da harmonia instalada no hábitat materno”3, fantasia esta construída “às pressas e com folclore” pelos analistas. E continua Lacan: “É impossível aquilatar a que ponto esse mito obstrui a abordagem desses momentos a serem explorados, tanto dos quais foram evocados aqui. Como o da linguagem, abordado sob o signo da infelicidade”4.

Prepara desta maneira o terreno para indicar, por fim, que é a partir do objeto a que deve ser situado o que se passa entre a mãe e a criança, indicando, ainda, de maneira enfática que “enquanto o mito que abarca a relação da criança com a mãe não for suspenso” persistirá o preconceito irredutível do qual é sobrecarregada a referência ao corpo5. Formalização que veremos ser ampliada e apresentada, de maneira excepcional, dois anos depois em “Nota sobre a criança”6.

Estas passagens, extraídas da “A locução sobre as psicoses da criança”, ilustram a questão que construí no decorrer da leitura do texto: por que estaria Lacan, neste momento, apontando para as consequências de uma prática que, mesmo seguindo as indicações da psicanálise, não a articula com o fundamental da radical descoberta freudiana? Cito Lacan:

Não menos notável é que nada tenha sido mais raro, em nossas colocações destes dois dias, do que o recurso a um desses termos que podemos chamar relação sexual […], inconsciente e gozo.

Isso não quer dizer que a presença deles não nos tenha comandado, invisível, bem como, numa dada gesticulação por trás do microfone, palpável.

No entanto, nunca teoricamente articulada7.

A pedra de toque do texto passa a ser, na sequência, o tema da segregação– introduzido por Lacan justamente no momento em que afirma que se os problemas não forem situados e tampouco a referência de como tratá-los for apreendida, cai-se no pior. Lacan inclui-se neste risco, coloca-se ao lado daqueles a quem se dirige. Sua frase precisamente é a seguinte:

A questão é situá-los (os problemas) e apreender a referência a partir da qual podemos tratá-los, sem que nós mesmos fiquemos presos num certo engodo, e, para tanto, dar conta da distância em que jaz a correlação da qual somos prisioneiro8.

Apresenta sua análise de uma época marcada, como nunca antes, pelos efeitos do progresso da ciência e, “não somente em nosso próprio domínio, o dos psiquiatras, mas até onde se estende o nosso universo, teremos de lidar, e sempre de maneira mais premente, com a segregação”9.Desta maneira, Lacan subverte totalmente as perspectivas que dominavam até então este congresso.

Assim, este parágrafo, que ocupou lugar central na leitura do texto, permite interrogar acerca do seguinte aspecto: o que Lacan indica aqui, neste momento e neste contexto, como o que pode fazer face aos efeitos do progresso da ciência? Ao que ele coloca nos seguintes termos: “como responderemos nós, os psicanalistas” à “segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes”? 10.

Notemos que o tema da segregação, também referido em sua “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”11 – texto extremamente contemporâneo da “Alocução” – , toma aqui um aspecto bastante singular: Lacan o situa também dentro do próprio domínio da psiquiatria, ou seja, chama atenção para o fato de que algumas práticas, sobretudo aquelas que carecem de uma orientação precisa ou são orientadas de maneira equivocada, produzem efeitos de segregação no seu próprio escopo. Esta é a sutileza que gostaria de recolher e verificar seu alcance.

Além disto, o que mais há em jogo aí? Um dizer fundamental de Lacan, tal como nos faz ver Laurent: ele está justificando, dando sustentação, à proposição de que existe um “nó entre a posição do analista e movimento da civilização”12. Toma para si a responsabilidade de elucidar que as coordenadas tomadas como referências naquele congresso, sem respaldo teórico ou equivocadas dentro mesmo do campo da psicanálise, fracassarão frente ao que deve ser enfrentado.

Ao propor que “toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, de refrear o gozo”13, coloca de maneira precisa uma das vertentes desta articulação entre civilização e gozo, articulação da qual os analistas, mediante as transformações da época, não podem mais se furtar.

Éric Laurent considera este texto um dos mais políticos de Lacan, junto com “Televisão”: “um texto que promove perguntas que deslumbraram seus ouvintes”14. Para ele, esta visão de uma época planetária que surge da destruição de uma antiga ordem social, tal como Lacan anuncia, já é uma crítica ao Édipo, e, como vimos anteriormente, circunscreve de maneira inédita a problemática em questão, tema do congresso, ao afirmar que “para compreender como situar a criança somos obrigados a levar em conta o tratamento do gozo em uma escala que não é a escala familiar”15  ou seja, a escala circunscrita pelo Édipo e a metáfora paterna.

Há outro aspecto a recolher deste texto, ainda seguindo a leitura de Laurent: as considerações de Lacan a propósito da criança, da liberdade humana e dos gozos retomam o que ele afirma em sua “Proposição de 9 de outubro” acerca do lugar da “ideologia edípica no mundo”16.

Nesta sua “Alocução”,o esforço e a posição decidida de Lacan – não deixando de evocar Freud –  ressoam para mim na frase final do texto, também de 1967, “A psicanálise. Razão de um fracasso”: “Quando a psicanálise houver deposto as armas diante dos impasses crescentes de nossa civilização (mal-estar que Freud pressentia) é que serão retomadas – por quem? – as indicações de meus Escritos”17.

Desta maneira, as indicações de seus Escritos – entendidas aqui como o saber que se pode extrair de uma práxis (a psicanalítica)como também o que Lacan propôs para o analista e sua Escola apoiado em uma “lógica anti-identificatória” ou em “identificações não-segregativas”18– são as preciosas armas que dispomos.


1Lacan, J. “Alocução sobre as psicoses da criança” (1967), Outros escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003, p 359-368.
2Ibid., p. 360.
3Ibid.,p. 365.
4Ibid., p. 365. Nesta passagem do texto, temos uma crítica de Lacan acerca da noção de pré-verbal que orientou a intervenção de um dos expositores – Daniel Lagache. Segue o parágrafo: “Mas o que pergunto a quem tiver ouvido a comunicação que questiono é se, sim ou não, uma criança que tapa os ouvidos – dizem-nos: para quê? para alguma coisa que está sendo falada – já não está no pós-verbal, visto que se protege do verbo”.
5Ibid., 366.
6Lacan, J. “Nota sobre a criança” (1969). Outros escritos, op. cit. p. 369-370.
7Lacan, J. “Alocução sobre as psicoses da criança” (1967), op. cit. p. 362 (grifos meus). Na nota introduzida em 26 de setembro de 1968, Lacan assim define sua explicita intervenção: a de “fingir uma conclusão”, uma vez que uma conclusão faltava àquele congresso – “Prestei-me a isto para homenagear Maud Mannoni”. E, ainda, encontramos na p. 368, a referência mais uma vez de Lacan à “falta de um respaldo teórico” e como esta falta, justamente, leva de maneira errônea a questionar a psicanálise ou o próprio psicanalista.
8Ibid.,p. 360.
9Ibid.,p. 360.
10Ibid.,p. 361.
11 Lacan, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” (1967), Outros escritos, op. cit. p. 263. O tema da segregação será apresentado no terceiro ponto de fuga da Proposição, contextualizado a partir dos campos de concentração e dos mercados comuns.
12 Laurent, É. “Le racisme 2.0”, Lacan quotidien, n. 371, 26 de janeiro de 2014.Disponível em lacanquotidien.fr.
13 Lacan, J. “Alocução sobre as psicoses da criança” (1967), op. cit. p. 362.
14 Laurent, É. “Existe um final de análise para as crianças” (1991). Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Edições Eolia, n. 10, abril/junho 1994, p. 28.
15Ibid., p. 28.
16Ibid., p. 28.
17 Lacan, J. “A psicanálise. Razão de um fracasso” (1967), Outros escritos, op. cit. p. 349. Pronunciamento realizado em 15 de dezembro de 1967, no Magistério da Universidade de Roma. Um dia antes, em 14 de dezembro de 1967, Lacan apresentou o texto “O engano do sujeito suposto saber” no Instituto Francês de Nápoles; e no dia 18 de dezembro de 1967, no Instituto Francês de Milão, “Da psicanálise em suas relações com a realidade”.
18Laurent, É.  “Le Racisme 2.0”,op. cit. Laurent utiliza estes significantes “lógica anti-identificatória”  e “identificações não-segregativas” para nomear o que Jacques-Alain Miller propõe em sua intervenção no I Congresso Científico da Scuola Lacaniana di Psicoanalisi (em formação) em 21 de maio de 2000. Ver Miller, J.-A. “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola”, Opção Lacaniana online, nova série, ano 7, número 21, novembro de 2016.