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O saber como mercadoria na Universidade


lacan21 - 16 de abril de 2016 - 0 comments

(1)comedia de enredosArt.AlejandraKorek

“Comedia de enredos”. Artista: Ale Korek

Antônio Teixeira (EBP-Belo Horizonte)

 

Um doutrinamento triste.

No tempo em que elaborava sua “Massenpsychologie”, Freud encontrava na Igreja e no Exército os modelos de massas artificiais que lhe permitiam pensar, do ponto de vista da economia libidinal, a estrutura das coletividades humanas. Mas o momento atual é distinto, as referências se modificaram. Diante da supremacia tecnológica que permite a guerra sem intervenção direta da tropa, o exército se vê progressivamente reduzido a um papel ilustrativo, ao passo que a Igreja assiste impotente ao esvaziamento de seu antigo poder de agremiação espiritual (MILNER, 2014)[1]. Nos idos de hoje, as massas artificiais são outras. Elas parecem se compor e se dispersar na pluralização das redes sociais, ao sabor de temas cuja eleição decorre mais de seu efeito de excitação coletiva do que propriamente de sua relevância social ou política.

Para além, todavia, do fenômeno recente dessas massas midiáticas efêmeras, J.-C. Milner divisa um tipo particular de massa vinda do passado que cada vez mais se destaca e progressivamente se impõe como modelo universal. Ele se refere à massa universitária iniciada a partir das corporações de ensino constituídas pelo Clero, no século XI, que atualmente se revela mais importante do que o Exército e a Igreja. J.-C. Milner se permite mesmo empregar o artigo definido singular para falar da Universidade Mundial, cuja língua litúrgica seria o inglês, carecendo apenas, por comparação à Igreja, de um papa e de um Vaticano que o júri do prêmio Nobel tenta suprir.

A etimologia do léxico indica o que motiva seu projeto: originalmente empregado para designar, na língua do direito romano, toda multiplicidade que pode ser considerada como uma entidade jurídica única, o termo universitas será progressivamente reservado às instituições de ensino superior a partir do século XIII (IDEM, p. 89). A Universidade passa a ser a instituição vocacionada a converter ao Um o que é originalmente múltiplo, no que diz respeito à produção, acúmulo e transmissão do saber. Uni-versitar corresponderia assim, A Universidade se pudéssemos transformar o substantivo em verbo, a conformar a multiplicidade dos saberes ao ponto de vista da unidade, numa espécie de conversão didática do Universal destinada a reproduzir e a expandir a classe clerical. Mas o saber, para ser universal, deve ser indiferente ao conteúdo dos saberes múltiplos que se particularizam, sendo necessário retirar-lhes a substância qualitativa para reduzi-los a seu aspecto formal. Dali se explica a absorção da ciência moderna pela Universidade que inicialmente a recusou, para em seguida tornar-se seu lugar de eleição. Ao dissolver o objeto de suas qualidades sensíveis, para dele reter somente o que se deixa formalizar em equações literais, a ciência moderna vem oferecer justamente o instrumento necessário à universalização do saber. Sua equivalência universal se expressa em linguagem matemática. E do momento em que desse Universo nada se excetua, a ciência terminaria por recusar a exceção divina que sustentava a Universidade, em sua fundação clerical, dando-lhe a forma secularizada do saber moderno que não mais necessitaria, como diria Laplace, da hipótese Deus. O acordo parecia se realizar: a ciência progredia no seio da Universidade, que por sua vez se legitimava como lugar de saber apoiado sobre o progresso da ciência (IDEM, p. 93).

Uma segunda torção, no entanto, se processou. Proclamando uma orientação contrária à via do saber universal incensada pelo Iluminismo, Heidegger afirmaria, em seu discurso do Reitorado, que a Universidade não deveria se submeter a esse Universal do saber calculante, indiferente ao conteúdo. Em vez de se colocar como lugar de transmissão do saber universal esvaziado de sentido pelo discurso da ciência, a Universidade necessitaria ser o espaço de promoção do saber como meditação provida de sentido pela história particular de um povo determinado nacionalmente. Embora não caiba discutir aqui a pertinência da argumentação de Heidegger, por mais que nela se denuncie sua adesão duvidosa à ideologia nacional-socialista, seu proferimento não deixa de indicar uma mutação que afetava a Universidade naquele período sombrio: a dissolução da crença no valor do saber universal indiferente ao conteúdo. Já naquele tempo se divisava uma demanda pelo retorno dos saberes múltiplos dispostos na pluralidade de seus conteúdos, anunciando a ocasião em que a Universidade finalmente integraria a acupuntura ao lado da das práticas alopáticas na grade curricular do curso de medicina. Mas de que Um, então, a Universidade hoje se sustenta, se ela não mais dispõe da unidade formal do saber universal? Para qual Um ela hoje uni-versa? Para o Um, responde J.-C. Milner, da forma-mercadoria.

Na verdade, isso pode ocorrer porque existe, para além da unidade formal do cálculo científico, outro modo de unidade indiferente ao conteúdo que Marx localiza com o conceito de forma de equivalência geral, em sua Crítica da Economia Política (MARX, 1983, p. 59 e sq). Resumamos, para não perdermos o foco, que se do ponto de vista do valor de uso os objetos variam qualitativamente, ao abstrairmos o seu valor de uso para entrar na perspectiva do valor de troca, as qualidades particulares desses mesmos objetos se apagam em sua conversão à forma-mercadoria, para se tornarem relações comparativas de valores abstratos. Assim como o cálculo sobre a massa e aceleração se aplica a qualquer objeto no campo da física, independente da particularidade de sua apreensão individual, a forma equivalente geral, ao funcionar como meio de permutabilidade direta entre os objetos convertidos à forma-mercadoria, se define como um valor abstrato que pode ser aplicado indiferentemente a qualquer objeto de troca, sendo a forma dinheiro aquela que assume o papel de equivalente geral no universo mercantil. Dali se deduz a importância dessa transformação ideológica na constituição da massa universitária: diante da proliferação dos pontos de vista particulares no campo ilimitado dos saberes múltiplos, onde não se pode mais ser indiferente ao conteúdo de cada doutrina, a ideologia mercantil permite restabelecer a perspectiva do Universal, no nível da própria consideração dos saberes circulantes, por meio da apreensão puramente contábildo saber-mercadoria em sua forma de equivalência geral, independente do seu teor ou da natureza de seu objeto.

A massa universitária assim se expande, constata J.-C. Milner, na mesma medida em que se coloca como mercado mundial dos saberes e iniciação pedagógica ao funcionamento do saber como forma mercadoria. A mutação é visível: ao passo que na Paidéia antiga, a transmissão do saber dependia da autoridade insubstituível do Mestre, assim como de sua palavra e de seu reconhecimento, o mestre universitário contemporâneo (com “m” minúsculo, bem entendido), tal como um produto do mercado, é uma peça removível, inteiramente substituível por outra. Seu ensino se autoriza menos por sua palavra viva do que por sua inscrição na engrenagem universitária em que deve funcionar. E do mesmo modo que ao capitalista interessa menos a razão de ser, a qualidade particular ou a essência do objeto transformado em mercadoria, do que a medida da quantidade, do custo e da margem de lucro relativa ao produto desse modo constituído, no caso da produção universitária, submetida à lógica desse discurso, importa menos a natureza do saber que ela produz, do que a medida de equivalência que permite tratar o saber como artigo a ser ofertado no mercado.

O que explica, portanto, a expansão desenfreada das práticas de avaliação, no ensino universitário, é justamente a exigência de se criar um sistema de equivalência geral destinado à padronização e à quantificação do saber enquanto produto comercializável. Padrões de medida, aliás, já há muito nos são familiares, como se atesta no caso dos trabalhos destinados à apresentação em mesas redondas de nossos congressos universitários, aos quais quase sempre se impõe o limite ultrajante dos infames “seis mil caracteres, corpo 12, sem espaço”. Mas, sejam esses limites quais forem, por mais arbitrários que possam ser, o que está efetivamente em questão, nessa transformação do saber em mercadoria, diz invariavelmente respeito à exigência de uma forma de equivalência geral. Pois da existência desse padrão depende o exercício de avaliação próprio ao regime do contrato no contexto mercadológico, o qual permite ao adquirente de um produto verificar se aquilo que ele obteve corresponde ao que ele de fato queria ter obtido na formulação de sua demanda.

Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta. A relação contratual supõe, em sentido contrário à condição que sustenta o desejo, a correspondência entre demanda e satisfação[2]. A esse fim se destinam as inumeráveis cláusulas das relações contratuais: para que o sujeito saiba do que está falando, é preciso suturá-lo no nível de uma demanda codificada em que tudo fique bem escrito numa linguagem isenta de equívocos. O problema, todavia, do ponto de vista do ensino universitário no campo da assim chamada saúde mental, é que não existe padronização do sofrimento psíquico: não há como exigir do sujeito que sofre de seus pensamentos que ele saiba de antemão do que está falando, a fim de lhe ofertar o produto demandado na forma mercadoria da pílula terapêutica.

Dar a palavra ao paciente requer, pelo contrário, como demonstra a clínica psicanalítica, a suspensão de toda codificação da demanda relativa ao sofrimento psíquico. Dali se esclarece porque a avaliação universitária dificilmente emitirá qualquer tipo de julgamento em favor da psicanálise. Considerando-se que a aliança da ciência com a tecnologia, a serviço do modo de produção capitalista, frequentemente resulta do esforço em estabelecer medidas de equivalência codificáveis na execução controlada de seu produto, não espanta notar que as inovações tecnológicas dessa natureza pouco afetem a clínica psicanalítica. Embora não desconheçamos a importância do arsenal farmacológico atualmente disponível no acompanhamento terapêutico do sofrimento mental, sabemos que não é possível codificar, partindo do parâmetro científico-tecnológico, o que seja, empiricamente falando, um tipo clínico para a psicanálise. Nenhuma tecnologia permite distinguir o que vem a ser o caso típico, definido como elemento incluído numa coleção de casos que exibem um comportamento previsível e controlável.

Mas o pequeno mestre contemporâneo, encarnado na figura tão arrogante quanto submissa do gestor, necessita preencher sua planilha com dados estatísticos obtidos a partir da reprodução do caso tipificável. Face à impossibilidade de se definir, por meio de uma doutrina de saber, o caso reprodutível destinado à avaliação padronizável no mercado da saúde mental, resta-lhe propor, ainda que envergonhadamente, uma codificação arbitrária. A nosologia que veio em socorro ao gestor, iniciada pelo DSM e finalmente adotada pelo CID, apoia-se numa tipologia de convenções discricionárias dissociada de todo esforço de teorização. E do momento em que está em questão ofertar um produto tipificável a uma queixa típica, a atual classificação se permite, entre outras coisas, ampliar a significação psicopatológica dos fenômenos subjetivos da angústia e da tristeza, por serem dados universais relativos ao desamparo inerente à condição humana. Disso se explica a transformação desses sintomas em doença, ao se constituir as amplas categorias clínicas dos transtornos de ansiedade e da depressão.

Seria ocioso criticar aqui o uso aberrante que esses manuais para uso do mestre gestor fazem das categorias clínicas. Mas ao considerarmos que seus autores se permitem tratar o sintoma da tristeza como uma doença, na forma do assim chamado transtorno depressivo, podemos revidar lembrando que tais classificações são, por sua vez, estruturalmente tristes ou depressivas. Para tanto, devemos ter em mente que a tristeza, do ponto de vista da psicanálise, é o afeto resultante de uma recusa da tensão lógica do pensamento que se manifesta nas formas de apatia do sujeito depressivo. Pois bem: se concebermos a lassidão mental da tristeza como resultante dessa demissão da tensão lógica do pensamento[3], temos motivos para identificar nos manuais classificatórios de psiquiatria uma doutrinação essencialmente triste. O que explica a lassidão bocejante que afeta quem tenta estudar as divisões classificatórias dos atuais compêndios de psiquiatria, cujas listagens agrupam fenômenos sem conexão entre si, é o abandono deliberado de todo esforço de se situar, logicamente, o sintoma como resposta do ser falante ao mal estar que o aflige. Interessa somente reter o que se deixa codificar numa forma de equivalência geral, segundo os parâmetros de uma prática que deve se submeter a avaliações de produtividade para prestar contas aos poderes que a subvencionam.

A epistemofobia é, como se vê, o corolário inevitável da epistemometria. Mas embora não caiba ficar indefinidamente dissertando sobre os efeitos dessa crescente submissão do ensino aos parâmetros mercadológicos de avaliação, há interesse em notar que a psicanálise, tão avessa, por sua própria natureza, aos atuais critérios obscurantistas de avaliação, continue a suscitar uma adesão entusiástica de boa parte dos estudantes e pesquisadores. Nossa hipótese, para irmos ao ponto, é que o que ainda assegura a transmissão da psicanálise lacaniana nas universidades, gerando um movimento de entusiasmo independente do seu reconhecimento contábil pelos poderes avaliadores, diz respeito a sua capacidade de resgatar a tensão lógica do pensamento que se perdeu nos relatos clínicos da psiquiatria atual.Mas seria, todavia, um erro supor que se busca naturalmente essa tensão lógica, como se houvesse uma tendência espontânea do sujeito a seguir seu encadeamento significante. O que se manifesta é antes uma recusa do pensamento, um não querer saber estrutural inerente à própria relação de sonegação que o sujeito mantém com a verdade do seu desejo, para se estabilizar em algum tipo de identificação. Ao se ponderar que a linguagem não confere identidade ao sujeito – o significante somente habilita as diferenças -, fica evidente que não se pode alcançar, pela via do pensamento, a identidade do “Eu sou”. É preciso não pensar para se alcançar a identidade do ser. É nesse sentido que o sujeito se coloca, para retomarmos um conceito caro a Deleuze, como uma espécie de síntese disjuntiva entre pensamento e ser.

Por considerar a ignorância como paixão fundamental do ser humano, a psicanálise entende que a vertente para qual o sujeito se move, preferencialmente, é a de não pensar para poder se afirmar na identidade do ser. Já a operação inversa do “Eu penso” seria, por sua vez, a operação artificial, não espontânea, da qual depende o acionamento do dispositivo analítico; ela desestabiliza a identificação do sujeito ao “eu sou” e assim promove a falta a ser como seu efeito. Podemos por isso dizer que as doutrinas que abordam o sofrimento psíquico como resultado de uma patologia orgânica ou de uma resposta adaptativa mal programada, devem o seu sucesso não apenas aos laboratórios e aos planos de saúde que a subvencionam. Elas oferecem ao sujeito a escolha alienante do “eu sou”, valendo-se de sua tendência espontânea de não pensar para se estabilizar no ser. Quanto à psicanálise, pobre de nós, ela não dispõe do patrocínio das indústrias farmacológicas nem tampouco da propensão do sujeito para sustentar o Eu penso; nós não contamos sequer com o apoio das fábricas de divã. Como fazer, então, para seguir no vetor do “eu penso”, se a opção preferencial é o “Eu sou”, se a paixão fundamental do ser é a ignorância, se não há, em princípio, nenhum Wissentrieb (LACAN, 1975, p. 96), se a operação verdade é posta de lado, no sentido em que ninguém quer dela saber?

Pois bem. Assim como Freud nos ensina que não se pode saciar a fome pela leitura de um cardápio, Espinosa já há muito nos advertia de a intelecção não consegue suprimir o afeto (cf. Proposição 7 do livro IV de sua Ética); uma paixão ou afeto só pode ser suprimido, ou contrariado, por um afeto contrário mais forte do que o afeto a suprimir. Podemos daí dizer que a psicanálise, para vencer a paixão original da ignorância, necessita valer-se de outra paixão de sentido contrário, essa paixão a que damos o nome de amor de transferência, a qual permite ao sujeito comutar o vetor da ignorância do “eu sou” para o desejo de saber do “eu penso”. Ninguém escolhe pensar, a não ser que tenha sua identificação desestabilizada por um sintoma que o convoca a decifrar-lhe o sentido, o qual depende precisamente de sua suposição ao Outro pela via do amor transferencial, conforme a linha do vetor diagonal que aponta para o inconsciente. É ela que permite passar da identificação alienante do “Sou e não penso” à verdade do inconsciente como “penso e não sou”, conduzindo o sujeito a um lugar em que ele não encontra nenhuma identificação, nenhum título de pertencimento a uma comunidade determinada:

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Rumo a um novo ensino

Nesse ponto, em nosso entender, se coloca a importância de se sustentar, contra as doutrinações tristes das alienações identificatórias que hoje ganham espaço, nas universidades, a possibilidade de ali engendrar o amor transferencial pela psicanálise, através da via de um gaio ensinamento. Mas embora a escolha dessa expressão – gaio ensinamento – esteja articulada ao sintagma gaio saber, evocado por Lacan em Televisão, é preciso não omitir a referência ao termo de Gaia Ciência que dá título ao célebre livro de Nietzsche. Ao inscrever entre parênteses, no frontispício da edição alemã, sob o título original Die Frölich Wissenchaft, a expressão “La gaya scienza”, Nietzsche tinha em mente um termo derivado do Provençal que aqui nos interessa particularmente. Trata-se de uma linguagem usada pelos trovadores da literatura medieval, durante o século XII, os quais definiam a gaia ciência como uma habilidade técnica de composição poética capaz de produzir o surgimento do discurso como evento iluminante do encontro com a palavra exata. Se a ela nos referimos, é porque sabemos que Nietzsche atribui a esses hábeis poetas a invenção do amor na literatura europeia, a qual não deixa de ter parentesco com a habilidade retórica através da qual Freud conseguiu constituir um gaio ensinamento absolutamente decisivo para a transmissão da psicanálise.

Impossível ler um texto freudiano sem experimentar o prazer que suscita sua narrativa. Mas embora fosse um homem de letras, Freud não era propriamente um literato, sua vocação sempre foi científica. Há, nesse sentido, uma diferença marcante que separa, em campos relativamente autônomos, a proposta literária daquela que se encontra num texto de orientação científica. Não existe motivo para se esperar, na leitura de um relato científico, uma exposição que venha nos seduzir, a supor que a objetividade à qual a ciência positiva se propõe depende justamente da neutralização de sua forma (ADORNO, 1984, p. 8). Diversamente, portanto, da criação literária, que se constitui como uma categoria estética, o artigo de informação cientifica se pauta por um engajamento expositivo que visa informar o leitor pela aquisição de uma verdade independente de sua sensibilidade (BENSE, 1991, p. 135). Ao passo que o escritor literário visa dispor a criação narrativa na unidade estética da forma, o escritor de orientação científica objetiva, em primeira mão, exprimir seu julgamento mediante inferências derivadas da pesquisa que ele realizou sobre determinado assunto. À medida que de seu trabalho se espera mais uma exposição do conteúdo do que uma valorização da forma, ele não deve sacrificar a consideração de nenhum elemento relevante que pareça comprometer a unidade expositiva do tema.

É por essa razão que Freud, ao elencar a hipótese de uma atração de Dora pela Sra K, em seus “Fragmentos sobre um caso de histeria”, assume abordar uma complicação que seria eliminada por um escritor literário em razão de seu efeito desarmônico sobre o conjunto do texto. Mas muito embora Freud se visse como um escritor científico, descomprometido com a sedução estilística, todos que de fato o leem experimentam o fascínio irresistível do seu texto. Por que então escritores como Marx e Freud, cujo engajamento está claramente decidido pelo julgamento inferencial dos fatos, exercem em nós uma atração similar à de um escritor literário da melhor linhagem?

A razão é que existe, tanto da parte de Freud quanto de Marx, um engajamento com a criação não propriamente de um tema, como ocorre na literatura, mas de uma perspectiva até então inédita sobre um tema já constituído. Se é possível, então, admitir a confluência entre a atitude estética da criação, no escrito literário, e a atitude demonstrativa da exposição, no artigo científico, o ensaio vem a ser justamente, segundo a proposição de M. Bense, a forma em que se estrutura essa dimensão. No ensaio se combinam, sem se confundirem, o cuidado estético do tratamento da forma e a perspectiva objetivante da exposição conceitual (LUKACS, 1975, p. 15 e sq.).

Não cabe ao ensaísta criar uma realidade exnihilo, como no caso da ficção literária, mas antes prover ao que já existe uma nova configuração experimental (IDEM, p. 28). Contrariando, no entanto, a aridez formal em que se reconhece o texto de um periódico científico, em seu esforço de dessubjetivar ao máximo as proposições da teoria, o ensaio se vale do prazer estético que sua leitura produz, como se a criação de uma transferência amorosa com o texto fosse condição essencial de sua transmissão. O engajamento expositivo do tema aqui coincide com o cuidado estético da forma, na medida em que se visa produzir, da parte do leitor, a adesão que deriva não do pensamento racional, mas da maneira pela qual sua expressão nos cativa. O que importa, quando se constrói uma configuração inédita sobre o que já está dado, é o conhecimento dos primeiros princípios que a nova perspectiva inaugura e que não podem ser alcançados racionalmente. São princípios que, precisamente por serem principiais, assumem uma posição axiomática que escapa ao procedimento dedutivo da demonstração.

Eis porque é preciso tratar o ensaio literalmente como ensaio, ou seja, como uma experimentação. O ensaio é uma tentativa de operar transformações sobre um domínio de conceitos para por em evidência, a partir de um novo ângulo perceptivo, o que até então não tinha visibilidade. O agir é aqui essencial – como o termo alemão Abhandlung atesta – já que o que define o engajamento do ensaísta é precisamente o campo da experimentação aberto por essa perspectiva. Por isso o ensaio não visa propriamente expor o conhecimento do objeto mediante um procedimento dedutivo derivado de princípios previamente estabelecidos. Ao ensaísta interessa menos conhecer o objeto, tal como ele se encontra determinado em seu campo conceitual, do que encontrar uma nova maneira de exibi-lo. O que se ensaia ver é como o conceito se comporta a partir de uma perspectiva insuspeitada, em conformidade com a nova questão que orienta a sua experiência.

A escrita psicanalítica responde, nesse sentido, a essa vocação ensaística, uma vez que a consideração clínica, desde onde ela se constitui, exige sempre a transposição do conceito para o campo da experimentação. A ensaística de Freud consiste na maneira pela qual ele trouxe à luz a dimensão do inconsciente, ao estabelecer princípios que dariam visibilidade inédita ao sintoma aparentemente errático, assim como ao sonho supostamente caótico, aos efeitos involuntários dos chistes e dos atos falhos. Freud teve que ser poeta malgré lui, contrariando a sua vocação de cientista, para tornar a cultura sensível a uma dimensão da verdade, subjacente ao equivoco, cujo reconhecimento a ciência normal de sua época não foi capaz de lhe conceder. Não é casual, portanto, que a Freud tenha sido atribuído o prêmio Goethe de literatura. Por mais que a psicanálise se apoie no discurso da ciência, ela jamais deixou de manter com a literatura uma relação que, longe de ser contingente, em vários aspectos revela-se determinante para a transmissão do seu objeto, na medida em que nos leva a perceber a criação no seio da própria exposição que a teoria transmite[4].

Distintamente do que se espera no relato universitário, na qual o sujeito que expõe deve saber a priori o que diz, o ensinamento da psicanálise explicita que o sujeito que fala, a um suposto saber, não sabe o que na verdade expõe, e assim termina por se perceber como criador ficcional de uma verdade distinta daquela que acreditava em princípio estar expondo objetivamente (LACAN, 2006, p. 44). Mas isso, ele somente alcança ao fazer a experiência de sua enunciação. Podemos inclusive dizer que o ensinamento da psicanálise se aproxima da forma de argumentação ensaística, em razão justamente dessa primazia dada ao campo da experimentação[5]. Pois se o ensaio, como experimentação, é uma tentativa de operar transformações sobre um domínio de conceitos para por em evidência, a partir de um novo ângulo perceptivo, algo que até então não tinha visibilidade, a experiência psicanalítica, por sua vez, é uma tentativa de fazer emergir, na fala do sujeito, um efeito significante distinto do sentido normalmente comunicável. Tanto ao ensaísta, como ao psicanalista, interessa menos conhecer o objeto, tal como ele se encontra determinado em seu campo conceitual, do que encontrar uma nova maneira de exibi-lo através de uma infração significante do conceito.

Daí se infere que tanto o ensaio quanto o ensino da psicanálise reivindiquem, em sua dimensão experimental, uma singularidade própria. Por ela se traduz a fidelidade do pensamento ao ponto de vista em que ele se ancora, seguindo o novo arranjo no qual os termos se explicitam em sua influencia recíproca. Ambos rejeitam a metalinguagem, no sentido de uma recusa veemente de tudo que se pretenda como verdade última. Mas se, a despeito de sua despretensão retórica, o ensaio ainda suscita o apego do leitor por sua forma lírica, é porque a perspectiva, que por ele se inaugura, não se deixa captar como inferência de um saber constituído. Seja ele literário, científico, ou polêmico, o ensaio se apresenta como uma arte combinatória que visa criar as condições nas quais o objeto, surgido sob uma nova luz, desperte no leitor uma transferência positiva, ou seja, uma tendência que o torne sensível a sua configuração. Tal é, aliás, o sentido da forma de apreensão que Pascal nomeia, em seu escrito sobre a Arte de persuadir, de conhecimento pelo coração: é preciso seduzir o desejo para produzir a adesão da crença aos princípios proposto por um saber inovador. Os princípios, por serem justamente principiais, não podem ser objeto de uma dedução. Por isso, o autêntico ensaísta sempre faz uso de frases elementares de enlevo poético, que ali funcionam como “fragmentos de um discurso sensível elevado à perfeição” (BENSE, 1991, p. 24).

Mas seria, contudo, um erro confundir o ensaio com o escrito poético, o qual almeja na forma estética o destino de sua narrativa. A forma estética no ensaio se coloca enquanto princípio, mas jamais como fim de sua destinação. É preciso que, no fim, o ensaio rompa o seu envelope estético, para fazer finalmente surgir o engajamento ético sobre o qual ele se constitui como proposta de transformação (IDEM). Do mesmo modo, diríamos então, para finalizar, seria também um grave erro sustentar que a suposição transferencial de saber constitui a finalidade da análise, sua consequência última. Se, de fato, o mínimo que se pode esperar de uma análise é que ela promova, pela via do amor transferencial, a verdade do inconsciente como falta a ser, ali ficar é permanecer, como diz Lacan, no mero “deixar rolar” da experiência (LACAN, 1967-1968). A indeterminação do sujeito como falta a ser não pode ser o saldo da análise; ela é algo a ser perdido no seu fim. Embora não forneça diplomas, como na universidade, a psicanálise nem por isso deixa de atribuir um título a quem é capaz de testemunhar de seus problemas cruciais, mediante a aquisição de um saber não suposto ao Outro que encontramos nos testemunhos do passe.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ADORNO, T.“L’Essai comme forme”. In: Notes sur la literature, Paris, Flammarion, 1984.
BENSE, M. “L’Essai et sa prose”. In: Trafic, Paris, P.O.L, nº 20, 1991.
IANNINI, G. Estilo e verdade em J. Lacan. B.H.: Autêntica, 2012.
LACAN, J. Le Séminaire – livre XV : L’Acte psychanalytique (inédito), 1967-1968.
LACAN, J. Le Séminaire – livre XVIII : D’Un discours qui ne serait pas du semblant. Paris: Seuil, 2006.
LUKÁCS, G. El alma y las formas, Barcelona, Ed. Grijalbo S.A., 1975.
MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. S.P.: Abril, 1983.
MILLER, J.-A. & MILNER, J.-C. Voulez vous être évalué ? Paris, Grasset, 2014.
MILNER, J.-C. L’Universel en éclats. Paris : Verdier, 2014.
[1] J.-C. Milner, « De l’université comme foule », in L’Universel en éclats, Paris, Verdier, 2014, pp. 87-114. A primeira parte dessa discussão se desenvolve a partir do referido ensaio.
[2] Sobre a especificidade moderna da relação contratual, a melhor discussão a esse respeito encontra-se em J.-A. Miller & J.-C. Milner, Voulezvousêtreévalué ?, Paris, Grasset, 2004.
[3] Eu me permito remeter o leitor ao artigo “Depressão ou lassidão do pensamento? Reflexões sobre o Espinosa de Lacan”, disponível online in http://www.scielo.br/pdf/pc/v20n1/02.pdf.
[4] O leitor encontrará uma instigante discussão a esse respeito, no livro de G. Iannini, Estilo e verdade em J. Lacan, B.H., Autêntica,2012.
[5] M. Bense soube, como ninguém, definir a importância dessa dimensão experimental do ensaio que aqui comentamos. Cf. BENSE, M. L’Essai et sa prose”. In: Trafic, Paris, P.O.L, nº 20, 1991.