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Sexuação e identidade de gênero:O analista face as mutações de gênero


lacan21 - 30 de dezembro de 2021 - 0 comments

Cristiane Grillo – EBP/AMP e Jésus Santiago – EBP/AMP

Em entrevista com Eric Marty autor do livro que acaba de ser publicado – O Sexo dos modernos: Pensamento do Neutro e teoria do gênero – J.-A. Miller afirma que o gender torna-se a última grande mensagem ideológica do Ocidente enviada para o resto do mundo[1]. A prova maior do impacto atual da mensagem do gênero é sua repercussão no âmbito do Direito. Importa apreender o modo como essas iniciativas legislativas incorporam a contribuição dos gender studies e, especialmente, por quais caminhos estes tratam a questão sexual. Não se pode, portanto, neglingenciar que a própria proliferação destes estudos já são uma evidência direta de que há mutações no real do sexo. O psicanalista conectado com a subjetividade de sua época deve se perguntar não apenas sobre as razões que levam essa porosidade do direito às teorias do gênero, mas também, as consequências destas sobre o próprio ato analítico.

Butler e o mal da diferença sexual

Mais além do interesse pela genealogia conceitual do binário feminino/masculino, sobressai, nas elaborações da Butler, a vontade política de um mundo no qual este seria desfeito e no qual as normas desempenhariam o seu papel de um modo radicalmente distinto e novo[2]. Que o gênero possa ser desfeito pressupõe, com efeito, que há nele um fazer suscetível de transformações, em contraposição à estrutura, ainda que dinâmica, da diferença sexual. Butler acredita que a política da desconstrução dos gêneros tem como pressuposto a proscrição da diferença entre os sexos, produto das construções sociais do regime patriarcal-colonial e, portanto, circunscrita à uma realidade puramente normativa[3]. Em contraposição à desconstrução da diferença sexual, o verdadeiro impasse de suas teorias é o transexual[4], na medida que ao querer desvencilhar-se do gênero com o qual veio ao mundo, ele se apega a uma nova identidade de gênero.

Butler aprofunda e radicaliza a crítica à diferença entre os sexos ao considerá-la produto de atos performativos próprios de gestos, atitudes, posturas e normas, em uma espécie de paródia, que se repetem sem cessar, para obter legitimidade, mas também em condições de a qualquer momento ser destruída[5].

Direito, identidade de gênero e sintoma

Se as teorias do gênero tendem a fazer sucesso junto aos juristas que confeccionam as leis que visam regular as mutações que assolam as relações entre os sexos, para o psicanalista o gênero é um conceito inócuo e inoperante no tocante à sua prática clínica cotidiana.

A psicanálise opera com a formalização lógica que, no curso do Seminário 20, denomina-se sexuação, e cujo cerne é tomar a conjunção da sexualidade com a inexistência da relação sexual. Logo, a noção de identidade de gênero está muito longe de assimilar o elemento crucial da contribuição de Freud a esse respeito, a saber: “a sexualidade faz furo no real”. Se a diferença sexual não é passível de ser desfeita por meio dos movimentos de contestação da norma heterossexual é porque ela se deduz deste impossível da não-relação sexual e não da diferença entre os semblantes masculino e o feminino. Justamente, o impossível da relação sexual se enraíza na diferença inexorável entre dois modos de gozo: o gozo fálico e o não todo fálico.

É compreensível que o discurso jurídico tome as mudanças no sexo sob o horizonte da visão essencialmente normativa do gênero. De modo algum isto quer dizer que a essência do direito seja tomar as normas sob os auspícios do dever. Enquanto “semblante de saber”[6], a vertente normativa do direito mostra-se intimamente articulada ao campo do gozo. Como propõe Lacan, o direito reconhece que “nada força ninguém a gozar, senão o superego”. Com efeito, sua função é “repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito o gozo[7]. Para a psicanálise, ao contrário, essas mutações no sexo são sintomas, no sentido de que a sexualidade encarna o desencontro entre os sexos. Enfim, se a diferença sexual resulta da materialidade própria do modo como cada falasser vive o gozo pulsional, pode-se afirmar que a contribuição inédita da concepção lacaniana da sexuação aponta para a infinitude mesma dos modos de gozo no ser falante.

A medicina, o direito bem como os movimentos políticos identitários via de regra são modalidades discursivas refratárias a essa infinitude dos modos de gozo e, portanto, incapazes de incluir a singularidade própria das enunciações subjetivas e as invenções sintomáticas inclassificáveis. A contribuição da clínica psicanalítica se faz a partir do fato de que a particularidade do caso se assenta na economia do gozo que excede a homeostase do prazer e por isso se apresenta como opaco e intraduzível por meio do simbólico. Aos seres falantes parasitados pela linguagem e fadados ao mal entendido, exilados de uma relação proporcional e passível de ser significantizada entre os sexos, restam as soluções singulares, complexas e por vezes, instáveis e precárias.

O analista em face das mutações do gênero

Algumas soluções singulares são observadas no caso do sujeito que chega ao serviço de saúde do adolescente[8] com uma demanda de hormonização e que, inicialmente, se nomeia como travesti. Ela havia sido abandonada pela mãe quando tinha dois anos de vida, e expulsa de casa pelo pai aos dez anos de idade, quando este percebe sua transição para o feminino. A adolescente então se antecipa à sua puberdade, subvertendo-a. Ela comete um ato infracional e é apreendida pela polícia, que segundo ela, desmonta seu corpo, arrancando seus apliques, roupas e maquiagens. Mas quando está prestes a conseguir o bloqueio da puberdade no sistema médico – procedimento autorizado para sua faixa etária – ela mesma desiste.

Ao contrário do que se espera acerca da conduta da paciente trans, Luisa demanda uma cirurgia de fimose, alegando que a ereção é dolorosa, e também um aparelho para os dentes encavalados. No curso do tratamento, em seus encontros com um psicanalista, ela inicia a escrita de um livro sobre sua vida. Luísa se opõe às correções sugeridas por uma professora na unidade na qual ela se encontra privada de liberdade: Esse é o meu estilo! Começa a fazer performances com uma artista que oferece ateliês nesse serviço de saúde e anuncia que quer “ser representante da transensibilidade”. Ressalta-se a importância, no caso, da solução forjada pela adolescente ao produzir o neologismo transensibilidade, que conjuga “sensibilidade” com o “trans”. Capta-se nesse “ser representante” um intervalo temporal em que recaí sobre “ser representante” em detrimento do “trans”[9].

Ana Rosa é outra adolescente que se nomeia trans e é encaminhada ao serviço de saúde do adolescente. Seu nome foi escolhido por ela a partir da conexão do nome da avó e da delicadeza presente nas flores. Ana Rosa tem uma irmã gêmea e manifesta a convicção de terem nascido “trocadas”. Uma fala do tio assume o valor de uma marca indelével: “ela deveria ter nascido morta”. Ana Rosa havia sido apreendida por um ato que fora considerado infracional; confinada no sistema socioeducativo tentou se matar várias vezes. A liberdade foi uma exigência que emergiu da conversação clínica. Ana Rosa fala do desejo de mudar oficialmente o nome e de se submeter a intervenções hormonais, às quais ela já teve acesso de forma clandestina. Nesse momento, fala sobre  o desejo de aplicar tranças no cabelo cortado à sua revelia e de aprender a trançar e posterga as intervenções médicas. Em regime de liberdade, ela continua a tecer, à sua maneira, seu laço com o Outro.

Esvaziar as precipitações do tempo

O caráter de semblante das representações de gênero é revelado por Ana Rosa, quando observa que sua irmã, a qual ela acredita ser uma mulher, pode ser até menos feminina do que a própria adolescente. Sendo o problema do gênero restrito aos semblantes que advém do Outro, mesmo enquanto semblante, o gênero é inerente à condição do ser falante, a saber: pode-se demandar ser reconhecido como um homem com útero, ou uma mulher com pênis. É nesses termos que a psicanálise lança um novo olhar sobre a transexualidade, não como uma aberração ou monstruosidade, mas como uma contingência que resulta da imersão do humano no campo da palavra e da linguagem.

A clínica do caso toma como ponto de partida a fala do tio, que decreta que ela não deveria ter nascido. Essa fala fixa Ana Rosa em um certo exílio com relação ao Outro. Essa posição de exílio, ainda que agravada pela clausura institucional, não se encerra num encarceramento subjetivo, uma vez que Ana Rosa busca fazer laço com o Outro através de seu endereçamento às mais diversas formas de discurso (médico, do direito, etc).

A escolha do seu nome, marcado pela delicadeza, evidencia o que constitui para a adolescente, um Outro manejável. A prática lacaniana está voltada para a ação calculada sobre esse Outro que emerge enquanto acessível e que não a encarcera numa nominação aprisionante. Essa mediação interrompe a série de tentativas de suicídio e permite um intervalo, suspendo a urgência das intervenções médicas sobre o corpo.

Como esclarece François Ansermet, o desejo de transição de um gênero à outro, pode ser a tentativa de forjar uma nova origem: um outro corpo, nome e identidade[10]. Essa questão concerne aos dois casos referidos antes. Luísa, uma criança abandonada, constrói um corpo, um nome, uma identidade, um estilo e uma nomeação, como “representante da transensibilidade”. Ana Rosa escapa do destino de ter nascido morta, tecendo e trançando um corpo, um nome que entrelaça o nome da avó e o de uma flor, indicando que a delicadeza pode possibilitar sua presença no laço social. Um encontro com um psicanalista torna possível um tempo de compreender, tempo no qual a própria adolescência talvez possa se constituir como sintoma frente à invasão da puberdade e no qual a clínica das soluções singulares terá lugar na existência desses sujeitos.


 

[1] MARTY, E. ; MILLER, J.-A. Entretien sur  “Le sexe des modernes”. Lacan Quotidien, n. 927, mar. 2021. Disponível em: <https://lacanquotidien.fr/blog/2021/03/lacan-quotidien-n-927/>. Acesso em: 20 abr. 2021.
[2] BUTLER, J. Défaire le genre. Éditions Amosterdam: Paris, 2006, p. 252.
[3] PRECIADO, P. Je suis un monstre qui vous parle. Grasset, Paris, 2020, p. 95. Se a diferença sexual se apresenta como fator puramente normativo, evidentemente que a ação do psicanalista diante de um sintoma que toca o problema da diferença sexual, será vista como “patologisante”.
[4] MARTY, E. et MILLER, J.-A. Entretien sur  «Le sexe des modernes», Lacan Quotidien, nº 927, lundi 29 mars 2021. https://lacanquotidien.fr/blog/2021/03/lacan-quotidien-n-927/
[5] BUTLER, J.. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[6] LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos, Jorge Zahar, 2003, p. 551.
[7] LACAN, J. O seminário, livro 20: mais ainda, Jorge Zahar, 1982, p. 11.
[8]  Trata-se do Programa de Extensão Janela da Escuta da Universidade Federal de Minas Gerais.
[9] CUNHA, C.F. O transexual como norma: desafiando os discursos. Mais além do gênero: o corpo adolescente e seus sintomas. Belo Horizonte: Scriptum, 2017.
[10] ANSERMET, F. Resenha sobre a intervenção de François Ansermet por Eugenia Varela. Disponível em https://radiolacan.com/pt/topic/1164/3.