Maria Rita Guimarães – EBP – AMP
Ao acabar de criticar o prêmio do Oscar 2020 conferido ao filme Parasita, Trump recebeu a resposta do estúdio realizador do filme: “Compreensível. Ele não sabe ler”.
Mas, desde as primárias das eleições que o elegeriam como presidente dos EUA, algo era escrito para que aprendesse a ler: uma América mista, miscigenada, múltipla, pobre e rica. “Isso somos nós”, uma dentre várias traduções possíveis para This is us, lançada em 2016, veio para ilustrar, numa discreta alegoria, como se constrói uma série política – está sendo considerada a mais anti-Trump já realizada! Não se trata de Weltanschauung, uma visão política do mundo, mas de seu avesso. Se lá nos vemos representados – somos nós – muito além do núcleo familiar em questão, muito além da América do Norte, é porque “o inconsciente é uma relação e se produz em uma relação […] Se o homem é um animal político é por ser, ao mesmo tempo, falante e falado pelos outros. Sujeito do inconsciente, recebe sempre de um outro, do discurso que circula no universo, as palavras que o dominam, que o representam e que o desnaturalizam também.
This is us, de Dans Fogelman, encadeia gerações e suas histórias, desenvolvendo-as em três linhas temporais, que se entrelaçam numa malha, na qual, com profundidade, às vezes com muito humor, examina o drama do ser falante em “fazer sua família”. Há um destaque para a figura do pai, multifacetado: pai-ídolo, amigo, ausente, agressivo, adicto, gozador. Pai adotivo e/ou biológico! Idolatrado ou odiado! De todos os modos, pais excessivos! Uma pletora de Pai que interroga o que seria uma transmissão a ser feita pela função paterna, mas, igualmente, como esta é recebida e com quais significantes o sujeito construirá sua filiação. Do latim filiatio, uma filiação se define como um vínculo legal de parentesco que visa a legitimar o lugar de cada sujeito na cadeia geracional. Por ela, inscreve-se um nome, sobrenome, sexo do filho e o atesta como filho/a de tal pai e tal mãe. Mas, não somente!
A problemática da adoção e seus avatares para cada ser falante foram descritos por Freud, como um aspecto estruturante no cenário de uma família edipiana, tal como escreveu sua tese sobre o romance familiar. Mas This is us avança, também, em outra perspectiva do tema: a adoção de uma criança por outra família. Uma adoção, nesses termos, seja ela formalizada ou não, é precedida por um fato: uma ruptura, um abandono, um segredo, com o qual, tanto a família adotante, como a própria criança terão que se confrontar com muitas dificuldades.
O essencial da série, como objeto de nosso interesse, está naquilo que, desde Freud e Lacan, conhecemos: somos todos adotados, marcando menos o “laço de sangue”, biológico, mas a perspectiva simbólica do laço de filiação que concerne ao ser humano, como submetido às leis da palavra e da linguagem. A narrativa ficcional o demonstra através dos dramas pessoais e familiares dos três irmãos Kate, Kevin e Randall; no esforço realizado por cada um dos trigêmeos para encontrar respostas à pergunta de seu lugar para o Outro na família e no mundo.
O que se desenha com sutileza no percurso de cada um dos integrantes dessa família é o que também conhecemos através da clínica lacaniana: o fato de sermos todos adotados não elimina ou metaforiza a marca deixada pela experiência vivida por quem o foi, na realidade de sua biografia. Uma experiência de outra natureza: a natureza do real. O real do abandono, do desamor, do estatuto de objeto – dejeto que lhe foi destinado. Se as crianças adotadas, ou à espera de que o sejam, viveram uma ruptura de seus primeiros laços afetivos – tal ruptura configurando um abandono –, esse abandono teria uma correspondência linear com o que Freud e Lacan chamaram traumatismo?
Wanted or unwanted, como nomeou Lacan, nascer desejado ou indesejado corresponde ao único traumatismo do nascimento. Tal fato comporta um ponto de real relativo à origem subjetiva de nascer (ou não) de um desejo, de uma linhagem que se transmite por dramas – se não houvessem, seriam inventados – derivados do próprio mal-entendido da linguagem. Com as crianças adotadas ou em via de o serem, em situações em que se acham sob proteção judicial, tendo sido retiradas da família biológica por maus-tratos, negligências, abusos sexuais, abandonos, a pergunta sobre sua origem – por vezes, incluindo segredos e/ ou mentiras sobre sua origem biológica – potencializa. Onde está a palavra original que lhe deu origem? De que palavra ela nasceu?
A família Pearson é uma família que podemos chamar freudiana, edipiana. Randall tem sua entrada nela, no mesmo dia do nascimento dos filhos esperados; no plural, porque os esperados eram três. Por circunstâncias mantidas opacas, um deles não sobrevive. No vazio do terceiro berço, falta irreparável para a mãe – assim supuseram seu médico e seu marido –, cai o bebê negro abandonado, também nascido naquele dia. O trio se fecha. A experiência subjetiva que fará cada criança e quais as modalidades dos recursos que cada um buscará no transcorrer de suas vidas, vão sendo reveladas com delicadeza. Por exemplo, a cor de Randall não aparece como problema, senão mais tarde, tanto para os pais como para ele mesmo. Mas, desde logo, vamos conhecendo o recurso inconsciente em que Randall se apoia e em quais momentos tal recurso falha, permitindo que a angústia o invada. A angústia é sua companheira, presente em suas crises de ansiedade e na tentativa de controle absoluto das coisas da vida, através de um imperativo de perfeição e a necessidade de sedução no laço com o Outro.
O roteiro da série é criterioso e consequente: leva em consideração que cada acontecimento terá efeitos sobre o sujeito considerado como sujeito na cadeia significante. Assim, não nos permite interpretações fáceis, prêt-à-porter. Para Randall, o acontecimento “ser adotado”; ser adotado por uma família branca, ficou às expensas de sua interpretação e de suas respostas inconscientes dadas a essas contingências de seu encontro com o Outro, contingências de sua vida.
Por que Randall se angustiaria de tal forma? Não falta amor na família, menos ainda para ele. Este plus de amor que lhe é conferido e, inclusive, dito por sua mãe, anos mais tarde: “Ele [Jack] empurrou um estranho para cima de mim e este estranho se tornou meu filho e o meu filho se tornou a minha vida” tem uma razão e várias consequências na família. Será seu irmão Kevin, que lhe explicará, já adolescentes, durante uma briga entre eles: “Você tem sempre um tratamento especial, porque é negro e é adotado. Admite que era mais importante para ela [mãe] e ela queria ter a certeza que você se sentisse especial a cada minuto de cada dia para não se sentir como um estranho”. Noutro momento, será a vez de Randall dizer a Kevin, que “era tratado como um cachorro” (por Kevin) e, como cachorro, sempre voltava para lhe pedir uma migalha de afeto. Neste espelho em que as cores de pele – branca e negra – se fundem, o mais de amor, que cada qual reivindica o que lhe foi roubado pelo outro, mostra a cara do gozo sob a manifestação da raiva fraterna. Para Randall, foi-lhe roubada, igualmente, a chance de uma “legitimidade”, por ser criado e ter em seu entorno, apenas pessoas brancas. A cor negra reveste, como uma máscara, suas perguntas, sem que ele se dê conta de que também são as mesmas – impronunciáveis – de seus irmãos: quem eu sou? Qual o meu lugar no desejo do Outro? Para apaziguar essa angústia que irrompe, uma cena brilhante: o pai, convencido de que Randall necessitaria de convivência com pessoas negras, matricula-o numa aula de lutas corporais. Para a iniciação do filho às flexões, Jack (pai) lhe pede que suba em suas costas. Simbolicamente, nesse gesto e, literalmente no ato do “golpe” físico, o pai lhe demonstra que jamais o deixaria laisser tomber, e que a diferença é sempre aceita e amada pela família. Na continuação dos capítulos, desenvolve-se, através desse uso do tempo sincrônico e diacrônico da narrativa, o obsessivo esforço de Randall em buscar as respostas que supõe capazes de lhe responder sobre o real do encontro entre um homem e uma mulher, pelo qual foi concebido. Ou seja, de qual desejo eu nasci? Embora seja uma pergunta para todos, o caráter inconsciente, repetitivo, por vezes atuado, dessa questão em casos de adoção – não diremos em todos! –permite constatar uma exigência de verdade sobre suas condições de chegada ao mundo e uma recusa à contingência do mal-entendido estrutural, tal como os explicou Lacan:
O homem nasce mal-entendido. […]. O corpo de vocês é o fruto de uma linhagem e assim parte das infelicidades que lhes acontecem está relacionada ao que houve nesse mal-entendido, até não poder mais. […] É isso que vocês herdaram.