Elisa Alvarenga – EBP/AMP
“… a transferência é amor, sentimento que assume aí uma forma tão nova, que esta introduz a subversão, não porque seja menos ilusória, mas porque dá a si um parceiro que tem a chance de responder, o que não acontece nas outras formas. Reponho em jogo o feliz acaso, exceto que, dessa vez, essa chance provém de mim e eu devo fornecê-la” (Lacan, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos (1973), Outros Escritos. Paris, Seuil, 2003, p. 555).
Neste pequeno texto, que introduz seus Escritos em alemão, pouco tempo após o término do Seminário 20, Lacan postula que, entre os seres sexuados, embora o sexo só se inscreva pela não relação, existem encontros, o feliz acaso – bon heur. A transferência é amor, sentimento que assume aí uma forma nova que introduz a subversão, não porque seja menos ilusória, mas porque dá a si um parceiro que tem a chance de responder. É amor que se dirige ao saber, porém o que permite a entrada na matriz do discurso não é o sentido, mas o signo, que inclui o gozo: existe um saber que não deixa de trabalhar em prol do gozo. A contingência é o lugar por onde se demonstra a impossibilidade, atestando um real transmissível pela escapada a que corresponde todo discurso[1].
Segundo Eric Laurent, Lacan não recuou, na sua vontade de se desfazer de um sujeito definido por suas identificações, de identificar o discurso a uma epidemia, afirmando o laço direto do corpo e do Outro da civilização[2].
Se o analista é o parceiro que tem chance de responder, conduzindo o analisante até o final da experiência analítica, o que acontece com o amor no final de uma análise? Uma análise se funda sobre o amor, mas pode mudar essa relação ao amor, como fazem pensar as referências de Lacan a um amor mais digno[3] ou, com Artur Rimbaud, a um novo amor[4], a partir de uma experiência de análise. Uma análise demanda amar seu inconsciente transferencial para, em seguida, consentir com o furo do inconsciente real, para além dos efeitos de verdade.
Eric Laurent aponta que um obstáculo epistemológico por muito tempo tornou difícil compreender o que seria esse novo amor com o parceiro sintoma, ao tomá-lo como um novo tipo de amor com os parceiros. O que Jacques-Alain Miller designou como parceiro-sintoma consiste em destacá-lo do parceiro da escolha amorosa: há no parceiro da escolha amorosa ou sexual, um para além do que faz a pessoa, e que se desvela ao final de uma análise[5]. O novo no amor está para além da falação e dos ideais, e tem a ver com os restos sintomáticos de cada um.
Podemos articular algo novo no amor ao final de uma análise a uma travessia das identificações, como contraponto ao ódio que se cristaliza de maneira visível em algumas fixações identitárias. Sérgio Laia demonstra, em um testemunho de passe, como o desenrolar da experiência analítica trata o ódio ligado às identificações aos significantes do Outro[6]. O caminho da análise vai no sentido inverso ao da constituição do sujeito: a partir das identificações e do sentido, passando pela repetição da fantasia, em direção à iteração do sinthoma, àquilo que permanece como mais próprio ao sujeito, e no entanto, mais desconhecido por ele. Na neurose, a iteração sinthomática pode permanecer oculta, até o final, por trás da repetição fantasmática. É assim que o discurso analítico caminha em direção à fluidez de lalíngua, à qual podemos associar algo novo no amor, mais próximo à dignidade da Coisa, como nos aponta Ram Mandil[7].
Se os S1 que marcaram o parlêtre no encontro com lalíngua permanecem inscritos de maneira ineliminável, a equivocidade da letra, que provoca acontecimentos de corpo e marca a borda do inconsciente real, lhe permite aventurar-se por novos caminhos, fora do leito da fantasia. Assim entendemos a articulação do novo amor ao ato analítico. Do lugar de mais ninguém, lugar do analisante que se torna analista, surge um novo modo do significante, que marca a ressonância no uso de lalíngua como equívoco, capaz de liberar algo do sinthoma.
Tomando Lacan em bloco, podemos então dizer que o amor, narcísico desde Freud, torna-se o amor que permite ao gozo condescender ao desejo para, no último Lacan, tornar-se um amor permeável ao gozo fluido de lalíngua, logicamente anterior à fixidez das identificações. O parceiro-sinthoma é então aquele que se ama porque ele faz parceria com seu próprio sinthoma, ou seja, amar é antes de tudo amar o sinthoma, como propõe Sérgio de Campos[8], em sua alteridade radical.
O poema de Rimbaud, “A uma razão”, que faz ressoar o sintagma “um novo amor”, é retomado por Lacan no Seminário 20, Mais, ainda, para dizer que o amor é o signo de uma troca de razão, ou seja, da passagem de um discurso a outro. A cada travessia de um discurso a outro, há uma emergência do discurso analítico. Mas ele já estava presente no Seminário 15, O ato psicanalítico, quando Lacan evoca aquilo que se ultrapassa no ato e que suscita um novo desejo:
Um golpe do teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma nova harmonia
Um passo teu recruta os novos homens e os põe em marcha
Tua cabeça avança: o novo amor! Tua cabeça recua: O novo amor!
Lacan conclui: “é a fórmula do ato”[9]. E nos convida a segui-lo.