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Uma paixão, alguns efeitos


lacan21 - 1 de maio de 2019 - 0 comments

Alejandra Koreck. ´Sem título´. Colagem feita à mão. EOL- AMP

Alejandra Koreck. ´Sem título´. Colagem feita à mão. EOL- AMP

Andrea V. Zelaya – EOL-AMP

A subjetividade de nossa época se encontra sob o manto de um progresso universalizante da ciência, “estamos imersos nele, que se volta para nós de maneira cada vez mais determinante, o que significa causal”1. Neste efeito de globalização que Miller denomina de “dispersão, dessegregativo”2, vislumbramos a ilusória liberação contemporânea, consoante à mundialização do mercado e dos intercâmbios desses valores no mundo. Porém, a ciência, em comunhão com o mercado, empurra à dispersão o que ela ignora, enquanto se mantém nas sombras, o inerente à condição de imigrante do sujeito no Outro. Essa dispersão homogeneizante na subjetividade se desordena quando “o real no Outro se manifesta de todo não semelhante. Há, então, sublevação. Então, surge o escândalo”2. É assim que padecemos da propagação dos efeitos do racismo e do ódio que isso acarreta.

Nesta perspectiva, me servirei de uma citação de Lacan da Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola,  que situa os campos de concentração como a “terceira facticidade real”:

[…] o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação4.

Hoje podemos verificar, como consequência do progresso da ciência profetizado por Lacan, a anulação e a foraclusão da singularidade dos sujeitos que são substituídos por um valor quantificado. A aparência ilimitada e homogênea da ciência tem um limite: não é possível fazer passar o modo de gozar de cada um pela maquinaria científica que tritura o mais íntimo do sujeito.

O que põe em manifesto a crescente universalização dos mercados comuns é que esta concentra o gozo de tal maneira que produz como efeito, a dispersão de sua concentração total em si mesma, semeando por toda parte, o rechaço ao diferente que o ódio torna manifesto. Ali onde não se suporta o gozo do Outro, o que está em jogo é o próprio gozo do ser que se desloca ao outro, que habita em seu interior como algo êxtimo. Longe de se separar daquilo que do próprio gozo se atribui ao Outro, dá-se corpo com a substância própria, para logo destruir, o que instaura o ódio.

Byung-ChulHan, pensador contemporâneo, referindo-se à mitologia grega, localiza a violência como necessária e indispensável à origem da subjetividade. No lugar de uma coerção externa, aparece uma coerção interna que se oferece como liberdade ao sujeito, o que é favorecido pelo modo de produção capitalista. A “auto-exploração”5 aludida por Hardt e Negri na obra mencionada converte-se no produto de uma sociedade do rendimento. Esta tendência mortifica o opaco de cada sujeito; não só há o intento de anular o singular, mas também a subjetividade fica determinada pelo igual6, frente à transparência dos dados informáticos. Vivemos expostos ao que Joan Fontcuberta definiu como “a fúria das imagens” na era da “googleização”.

No regime da auto-exploração, a agressão se dirige a si mesmo e incrementa o ódio como acumulação. Há impacto nos corpos.

Em Psicopolítica7, Byung-ChulHan afirma que estamos determinados por uma “ditadura da transparência”, dominados por esta era digital que cria a necessidade de obediência ao uso indiscriminado das redes. Ele nomeia a época como o capitalismo da emoção, que favorece e constitui instabilidade. A emoção se converte em um meio de produção extra limitado das coisas, em que o sujeito termina como um consumidor-consumido. Um sujeito obediente que cristaliza seu gozo fixando-o em dita distribuição e dispersão.

As formas hegemônicas do capitalismo, sendo a obediência uma de suas caras, pode também ser pensada a partir do livro de Agustín Neifert, Arendt, Von Trotta y la “banalidad del mal”8, cuja linha central destaca que esta acontece quando os seres humanos se recusam ao discernimento e quando os atos estão determinados pela obediência a um cumprimento sem juízo próprio, alienado a seguir, ao que outros indicam já atuar como peças sem pensamento de uma prática monstruosa.

Hannah Arendt indaga, investiga e fundamenta “a terrível, indescritível e impensável banalidade do mal”.

O funcionamento do necessário do sintoma, enquanto o que não cessa de se escrever, permanece preso na obediência ao Outro, desvela a renúncia a pensar por si mesmo, o que se converte em uma engrenagem de uma grande maquinaria em que os homens podem se converter em supérfluos. Como indica Hannah Arendt, mas também como a psicanálise nos ensina, deixar de pensar em cada ato e em suas consequências é tomar distância de um juízo íntimo, singular e elidir as responsabilidades.

Há mais de um mês, em uma noite do passe, Elena Levy Yeyati, cujas notas agradeço, recordou-nos a citação que M. Bassols realizou em sua conferência, “A impossível identificação do analista”9, sobre o que Miller reformula da segunda máxima kantiana, para extrair dali suas consequências para a psicanálise: “pensar no lugar de cada um outro” é como uma identificação, é como compreender ao Outro. Introduz uma ligeira modificação para antes propor “colocar cada um outro em seu lugar de sujeito”, isto é, para fazer valer a “singularidade” de cada um, a singularidade de seu sintoma. Este ponto é o que me interessa destacar, já que o sujeito alienado à obediência das condições de gozo do Outro, identificado a esta posição, inclusive se a ignora, abandona seu juízo íntimo e permanece subsumido ao necessário do sintoma. Governado pelo fantasma, fica preso à violência.

Se não emerge nossa voz, a de cada um, se cada um não se separar do necessário para poder fazer uso do sinthoma, aberto à contingência, o ódio permanecerá no “zênite social como um novo objeto que brilha com sua obscura presença que vem no lugar da coisa freudiana, das Ding, inominável e sem representação possível”10.

Um poema do dominicano Manuel Del Cabral11 abre um pouco mais de luz em nosso caminho.

Não caminhes comigo,
Não caminhes,
Mas quem és
que me odeias tanto?
Quem?
Não vês que sou tua voz.

Tradução: Fred Stapazzoli

Notas:
1 Miller, J.-A. “La teoría de la causalidad y el sentido”. Freudiana 83. Barcelona. RBA Libros S.A., 2018, p. 9.
2 Miller, J.-A. “Enemigos éxtimos”. Página 12, Psicología. 8 de abril de 2010.
3 Ibid.
4 Lacan, J.  “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” (1967). Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 263.
5 Han, B.-C. “Violencia de lo global” (2013) Topología de la violencia. Buenos Aires. Herder, 2017, p. 185.
6 Wechsler, D. “¿Por qué hacer exposiciones?” (2017).  Sublevaciones. Buenos Aires. EDUNTREF, 2017, p. 15.
7 Han, B.-C. “La crisis de la libertad” (2018)  Psicopolítica. Neoliberalismo y nuevas técnicas de poder. Buenos Aires. Herder, 2018, p. 20.
8 Neifert, A. “Arendt y la banalidad del mal “. Arendt, Von Trotta y la “Banalidad del mal”. Buenos Aires. Ediciones Fabro, 2015, pp. 246-268.
9 Bassols, M. “La imposible identificación del analista” (2017). Una política para erizos y otras herejías psicoanalíticas. Buenos Aires. Grama ediciones, 2018, pp. 37-38.
10 Bassols, M. “La clínica del odio y la violencia” (2014). Psicoanálisis y el Hospital. Año 23 N°45. Buenos Aires. 2014, p. 157.
11 Del Cabral, M. “No camines”. Los huéspedes secretos. Buenos Aires. Ediciones Carlos Lobilé, 1974, p. 95.