Alejandro Reinoso – NEL-AMP
“Só existe analista se esse desejo lhe advier,que já por isso ele seja rebotalho[rebut] da dita (humanidade).
Digo-o desde já: essaé a condição da qual, por alguma faceta de suas aventuras, o analista deve trazer a marca. Cabe aseus congêneres “saber” encontrá-la. Salta aos olhos que issosupõe um outro saber elaborado de antemão, do qualo saber científico forneceu o modeloe peloqual tem a responsabilidade. “É justamente aquela que lhe imputo, de haver transmitido unicamente aos rebotalhos da douta ignorância um desejo inédito”.
J. Lacan, “Nota Italiana”
Pode-se interrogar e investigar as paixões e afetos que convocam o próximo ENAPOL,“Ódio, cólera e indignação”, nos Escritos e Outros Escritos de Lacan de forma direta ou indireta, inclusive onde não há referência explícita a alguma delas. Tal é o caso da “Nota italiana”. Mas, por que ir a um texto como este,quando existem outros mais explícitos e ricos em referências? A “Nota…” se encontra em uma serie de textos na seção V dos Outros Escritos que se dirigem à Escola. Isto localiza a pergunta afetivo-passional do ENAPOL em relação direta com o convite e proposição que Lacan faz a respeito da experiência de Escola: O que há das paixões e afetos nos textos de Escola? Que elementos localiza ou orienta Lacan a respeito das paixões em geral e, eventualmente de lado, [eventualmente de costado] àquelas que nos convocam para o ENAPOL em São Paulo? Que pistas precisas encontramos acerca dessas paixões neste escrito de Lacan e nesse momento de seu ensino?
A“Nota italiana” e o convite à mudança de discurso: efeito amor
Na “Nota…” Lacan aborda diversos tópicos: o analista, sua autorização, os títulos de AE e AME e a garantia; a relação da ciência e da psicanálise com o real como contraponto. Ponto alto e crucial é a relação do analista com o lugar de rebotalho e a lógica do passe.
A“Nota…”é uma carta de abril de ’74 dirigida a três italianos que assistiam a Lacan, cada um com seu grupo, do qual eles eram cabeça de serie. É uma historia conhecida: um fracasso, pois continuou a lógica grupal e finalmente Lacan abandonou o empreendimento. Lacan convocava a utilizar o dispositivo do passe na entrada como eixo central de conformação da experiência de Escola. Convite que aposta em produzir uma mudança no discurso do amo, que regula o fenômeno de massa e a dinâmica dos grupos; “para assentar o discurso psicanalítico, é hora de colocá-lo à prova: o uso decidirá de seu equilíbrio”2. Neste sentido, esta carta orienta a que “uma Escola fundada no passe é a antítese de uma Escola fundada sobre grupos e correntes, e é antes a premissa daquilo que na AMP é a Escola-Una”3.
Sabemos que o amor é signo de uma mudança de discurso, então o convite a introduzir o discurso analítico na própria Escola é a produzir contingências,que eventualmente gerem um efeito amoroso: “é preciso prestar atenção à colocação em prova dessa verdade de que há emergência do discurso analítico a cada travessia de um discurso a outro. Não é outra coisa que eu digo quando digo que o amor é o signo de que trocamos de discurso”4.
Na “Nota…”Lacan não convida a amar a Escola como complementariedade, tampouco aponta para a entrega de um dom simbólico.Destaca o fato de que é necessário que haja analista para que se produza a autorização, com um desejo que tem como consequência ocupar o lugar de rebotalho pela via da douta ignorância e que isso seja verificado através do passe. Articuladamente, se requer certa aposta para que se produza uma introdução do discurso analítico na Escola. A proposta é lógica e pragmática,porém requer se esteja disposto a apostar, “para isso é preciso que ele corra um risco”5.
A transferência à Escola: seguir a Lacan e a suposição de saber
Destaca o texto a reiteração do convite a segui-lo (a Lacan): “Isso terá outro alcance no grupo italiano, se ele me seguir nesse assunto”, “o que o grupo italiano ganharia ao me seguir seria um pouco mais de seriedade do que aquela a que chego com minha prudência”. No caso do trípode italiano: “as pessoas implicadas não deram continuidade às sugestões aqui expressas”6. O texto explicita em que consiste segui-lo; não é um “vem e segue-me” religioso. Significa, em termos práticos, aplicar os dispositivos de Escola, com o passe como vértice, pois esta via pode habilitar um passo na mudança de discurso para o discurso analítico na própria Escola.
Por isso, evidentemente não basta com o dizer que se segue a Lacan, dizer “sou lacaniano”, senão que “para tanto é preciso levar em conta o real. Ou seja, aquilo que se destaca de nossa experiência de saber”7. Certamente o real na própria análise, mas em nível da Escola, considerando o real, na transferência com outros. Neste ponto Miller sublinha:
Desse modo, no sentido de Lacan, a transferência não éde modo algum, um fenômeno individual. Uma transferência de massa, como vemos todos os dias, é perfeitamente concebível: é uma transferência multiplicada, causada em um grande número de sujeitos pelo mesmo objeto, suportado pelo mesmo sujeito suposto saber, que se manifesta por sentimentos negativos tanto como positivos, e que é constitutivo de um grupo8.
A Escola sujeito, tal como coloca Miller, significa que esta “é uma experiência inaugural no sentido da experiência analítica. A Escola é inaugural na medida em que ela inaugura um novo sujeito suposto saber,e que sua história é uma série de fenômenos analisáveis”9.
Amor, saber, ignorância e resto
A“Nota…” foi escrita enquanto ditava seu Seminário Os não tolos erram, onde especifica diversos e preciosos detalhes do amor, sublinhando uma articulação que localiza a relação entre a paixão amorosa e o saber em relação à psicanálise e, por tanto, à Escola:
o amor é a relação do real como saber. Quanto a psicanálise, é preciso que esta corrija esse deslocamento, deslocamento consistente que, depois de tudo, nãofez maisdo que seguir a viradacentrífuga do lugar dodesejo.É preciso que a psicanálise saiba que é um meio, e é no lugar do amor que ela se abanca.10
Na“Nota italiana” Lacan localiza que o saber em jogo é a inexistência da relação sexual, perante a qual “é a relação do real com certo saber.Eo amor sutura o buraco”11.
Lacan estabelece o nexo entre amor, saber e a paixão da ignorância: “é o amor que se dirige ao saber. Desejo, não: porque, quanto à Wisstrieb, ainda que tenha tido o carimbo de Freud, podemos retomá-la à vontade, ali não há nada dele. A tal ponto, inclusive, de nisso se fundar a grande paixão do ser falante: que não é o amor nem o ódio, mas a ignorância”12. É neste laço do real como amor transferencial que o discurso analítico pode entrar, pois opera por fora do sentido.Orienta-se como signo e aponta para a mudança de discurso que põe como agente o objeto a, o analista pode posicionar a ignorância douta sem dominar: “o que faz sua entrada na matriz do discurso não é o sentido,maso signo,eis o que dá a idéia que convém ter dessa paixão pela ignorância”13. Com efeito, na “Nota…” Lacan indica que é ao analista a quem se lhe pede a responsabilidade “de haver transmitido unicamente aos rebotalhos da douta ignorância um desejo inêdito”14.
Se a análise não leva à posição de rebotalho –destaca radicalmente Lacan– “é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance”15, o qual tem a marca da ausência de entusiasmo que é próprio do analista e de sua posição de rebotalho. O analista ao não autorizar-se pode manter felicidade e boa fortuna, embora com um matiz de depressão.16 O lugar de rebotalho do analista permite “fazer o amor mais digno do que a profusão do palavrório”17. Tagarelice que com frequência também abunda nos afã de Escola, a qual, por estrutura, não se exime transferencialmente do amodio.