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A opacidade, ponto de ruptura na história


lacan21 - 24 de junho de 2022 - 0 comments

Flávia Cêra (EBP/AMP)

Há uma tese sobre a filosofia da história de Walter Benjamin que diz o seguinte: “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”[1]. A reminiscência, ao contrário da rememoração, não se reencontra no simbólico e não permite que um sujeito faça uma verdade da sua experiência[2], como diz Miller. A reminiscência não se encadeia, é a interrupção do texto porque não está em relação com o Outro. Nunca estão muito bem situadas e enquadradas na trama, são imemoriais e inesquecíveis e estão fora do tempo, suspendem o tempo para marcá-lo de outra maneira. Não seria isto também a lógica de um acontecimento? Apropriar-se da reminiscência no momento de perigo não seria, justamente, a possibilidade de escrever o que não cessa de não se escrever? O que não implica verdade última nem mesmo sentido estável, tampouco dizer tudo, mas aponta para a possibilidade de arrancar o irrepresentável da sua desaparição e sobrepor, no presente, um passado que não cessa de passar, mostrar suas deformações que respondem aos mesmos mecanismos de poder de outrora. Articulá-lo é justamente colocar a contingência em jogo no que se via como destino. Essa escrita, contudo, não aparece para reconstruir um mundo perdido nem mesmo para construir um novo mundo, mas para desenhar as bordas de um furo no saber. E que esse furo permaneça vazio, para que ele não se torne assimilável pela ordem do dia, para a partir dele ser possível encontrar os fôlegos, respiros necessários, mantendo aberta a possibilidade de viver uma história outra e, consequentemente, o porvir.

Um conto de Itamar Vieira Junior intitulado “Na vastidão, o céu da noite”[3] nos ensina sobre isso. Ele nos conta de Rita, uma mulher negra, que, na universidade onde é professora, ouviu dos seus colegas um riso irônico quando diziam “que não poderiam mais chamar o evento de buraco negro, já que a qualquer hora poderiam ser acusados de racismo”. Rita pesquisa sobre eles, os buracos negros, tenta decifrar seus mistérios com seus métodos de pesquisa. No conto, o buraco negro, objeto de investigação e pesquisa, começa a se confundir com o buraco negro da vida de Rita, sobretudo, com os rumores que ouvia sobre Bárbara, sua antepassada escrava, que era sempre evocada quando Rita se escondia para observar o céu e sonhar. Bárbara, como equivoca seu próprio nome, era insubmissa às ordens, motivo de vergonha e fascínio na família. Entre as mulheres, seu enigma circulava com muita curiosidade. A avó, que era a fonte, contava muito pouco. A aproximação entre as duas era temida pela avó por compartilharem certo gosto pela escuridão da vasta noite. O enigma de Rita era o enigma de Bárbara. Rita, porém, não encontrava documentos, fotos, outros “fatos” que poderiam atestar a existência de Bárbara a não ser essa presença sussurrante e as histórias mal contadas da avó, sempre em pedaços imprecisos. Decidiu, então, com um forçamento, uma bricolagem dos “sussurros partidos”, escrever uma história que mantém o furo no saber e que extrai dali outra possibilidade de vida. Nessa travessia, loucura, mal e escuridão, as insígnias da alteridade, vão se esvaziando e ganhando uma borda que desenha esse furo e que retira Bárbara de um extravio histórico sem encadeá-la, no entanto, na ordem do mundo, nunca será possível dizê-la toda. Bárbara é feita das ruínas da história familiar e é também feita da história de um país, de um povo ela figura aqui desvelando o destino que se deu ao “continente negro”: a segregação. A alteridade que se encarna em seu corpo, a vastidão do céu, chuva de estrelas, essa “loucura”, era também seu elemento de “liberdade indomada”. Teve seu preço, é verdade, mas do céu da noite de Bárbara, Rita pôde ler essa loucura inscrevendo-a em uma sorte de coragem e vocação sob o céu estrelado. Aqui a escrita tem uma dupla função, é a escrita de uma vida cujo destino se toma como determinado à repetição e que encontra outra forma de se inscrever na história da Rita e também o estabelecimento de um texto perdido no arquivo da história do mundo. Nesta dupla função ela representa, mas também apresenta o irrepresentável. Dá notícias discretamente desta verdade perturbadora em um trabalho da língua, da memória, das peças soltas.

Rita e Bárbara dizem de Itamar, Maria, João, eu, você, porque elas nos atravessam, nos convocam, fazem parte do nosso mundo. E não por um mecanismo de empatia e identificação, também é, mas não só: é porque implica e compromete aqui e agora, na transversalidade das vozes, do tempo, do espaço e dos corpos que povoam o presente. E como isso nos atravessa? Saidiya Hartman tem um texto intitulado “Vênus em dois atos”[4] em que ela propõe a fabulação crítica como uma forma de trabalho de criação e teríamos que pensar de que criação se trata afinal porque envolve questões muito complexas. São muito interessantes as perguntas que ela se coloca nesse texto e que deveriam interrogar todos nós: quais os limites do arquivo, dos fatos narrados, da verdade, da ficcionalização, o que se pretende com isso, o que é a história, em suma, é a pergunta que permanece sempre aberta sobre o irrepresentável, podemos representá-lo? Que tipo de violência isso pode guardar? A que tipo de assimilação isso pode servir? O que perdemos quando deixamos as coisas no campo do irrepresentável, do inimaginável? Bárbara e Rita ganham mais que uma história, elas passam a ser nomes da história, os nomes de uma vida, que condensam e perpassam passado, presente e futuro. Isso não muda a história terrível e dolorosa da escravidão, mas pode alterar alguma coisa nesse mundo, nesse tempo, que é o nosso. Ali onde havia um destino para o povo negro, se escreve o indeterminado, o não sentido da determinação. Bárbara, sua história e a escrita dela, é um ponto de ruptura no continuum da história. Ela será sempre um tanto opaca ao sentido e é o que permite essa brecha que resiste à assimilação, mas ela é também um dos nomes da história, um ponto na constelação, sempre muito difícil de situar e que não há como ignorar. Aí, me parece, também está a importância, para nós psicanalistas, da prática da língua, dos modos de usar a língua para dizer ou escrever, para perturbar os arquivos, a história, para fazer alguma coisa com o irrepresentável, o inacessível que constitui a matéria da vida.

 


[1]           Benjamin, W. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.
[2]           Miller, J.-A. Perspectivas do Seminário 23. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 52.
[3]           Junior, Itamar Vieira. Na vastidão, o céu da noite. Disponível em: http://suplementopernambuco.com.br/edições-anteriores/128-botão-vermelho/2588-na-vastidão,-o-céu-da-noite.html
[4]           Hartman, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista Eco Pós, n.3, 2020. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27640