Cleide Pereira Monteiro – EBP-AMP
O amor será dar de presente ao outro a própria solidão? Pois é a última coisa que se pode dar de si
(Clarice Lispector)
Como o falasser se autoriza do feminino a partir da experiência analítica, promovendo mudança na esfera do amor e do laço com o Outro? Esta questão nos instiga a pensar sobre as transformações que o amor sofre em uma análise que chega ao seu término: do amor condicionado pelo pathos da repetição – amor atrelado ao sintoma, ao campo das identificações – ao amor com condições vinculado ao acontecimento de corpo, ligado, portanto, ao sinthoma[1], à marca irredutível do gozo êxtimo.
Lacan nos ensina que “para o homem, uma mulher é sempre um sintoma”[2]. Uma mulher faz da devastação seu parceiro-sintoma[3], consequência do amor sem limite, tecido no infinito do gozo. Parceira de sua solidão”[4], a mulher experimenta um gozo marcado pelo “selo da ignorância”[5]. O que pode a experiência analítica promover nessa paixão de nada querer saber sobre o gozo? É preciso aí considerar a experiência com a solidão. Mas, de que solidão se trata?
A solidão do extimismo
A análise é uma experiência com o feminino, essa terra incógnita que habita em cada um de nós e onde se transita o gozo como alteridade irredutível, fazendo com que o falasser experimente uma solidão que não tem borda nem limites[6]. É uma solidão vinculada ao furo do Outro, solidão do gozo do Um, irredutível, sem representação possível. Como assinala Bassols[7], trata-se de uma “solidão do extimismo”[8].
Para adentrar nesta zona de uma solidão irredutível, uma análise se orienta pela instância da letra da lalíngua singular, pelo acontecimento de corpo efeito do troumatisme[9], pela ação de um significante que opera fora do sentido. Dos vestígios do que foi o trauma do gozo sobre o corpo, surge a via de acesso a um novo amor, como nos ensinam os testemunhos de passe.
Um mulher Outra um pouco só
Irene Kuperwajs[10] fala de um acontecimento de corpo precoce que lhe acompanhou durante os primeiros meses de vida: “espasmodesoluço”, escutado em sua infância como uma holófrase. Isso a fazia reter o ar, o grito e o pranto. Este acontecimento de corpo só se fez presente nos últimos tempos da análise e foi lido como “a insondável decisão do ser que fixa precocemente o gozo em silêncio”. Oferecia-se ao outro como um “doce”, uma balinha que apetece para ser devorada e gozar do calar. Ser o doce na boca do Outro para calar era a modalidade de gozo da fantasia, cujos efeitos ressoavam em sua parceria amorosa, condicionada que estava pelo pathos da repetição.
Como balinha – ser chupada, engolida ou ficar engasgada –, esta “doce” fantasia insistia na esfera do amor. Ela diz que desde pequena foi apaixonada pelo amor e seus imbróglios. Ad-mirava[11] seu marido, pai de seus filhos, que encarnava o lugar de suposto saber. Em sua “discreta” erotomania, sentia-se única, olhada e amada. Só depois, pôde ler que foi uma parceria devastadora. Diz: “ele falava, brilhava, e eu escolhia calar, provocando ainda mais a consternação mortificante do amor”.
Separar-se da modalidade de gozo da fantasia a conduz à solução sinthomática, “falar com a voz solta e firme”, solução que coloca uma borda no ilimitado do gozo. Do silêncio aberto e feminino, surge o “espasmo sonoro” – com o apoio da escritura que emerge no último sonho: três letras Z barradas (Z/Z/Z) – segue as surpresas da vida com esse novo arranjo com o gozo que vivifica. Do encontro com a letra de gozo, surge a possibilidade de um amor mais digno, uma nova aposta no amor, na qual já não se tratava do amor absoluto, nem de ser a única. A voz do parceiro e seu modo de falar ressoaram em seu corpo. Fora da repetição do mesmo, é um homem que a faz abrir a boca para falar e para experimentar o que ele cozinha para ela.
Kuperwajs faz uso de uma frase de Lacan do Seminário 21 para dizer que começou a viver o amor como “o encontro de dois meios-dizeres que não se recobrem”[12]. Trata-se de ser a única, mas no sentido de consentir com a singularidade do seu gozo, o que a faz Outra também para si mesma. Ela formula nos seguintes termos a solução que encontrou no amor articulado ao feminino: “uma mulher um pouco só, acompanhada por um homem”.
Então, talvez possamos dizer que a invenção de um amor mais digno passa pela experiência com a solidão em sua irredutibilidade, esta que remete à diferença absoluta, que atesta que em se tratando de modos de gozo não há reciprocidade. Podemos dizer que esse novo amor que surge no final da experiência analítica se sustenta a partir do Real, isto é, o que na pulsão, Lacan[13] reduz à função do furo.
Advindo dos buracos pulsáteis, sem memória, sem representação – “fora dos limites da lei, somente onde ele pode viver”[14] – esse novo amor pode desfrutar de um vazio liberado, pronto a acolher o impacto da “mordedura do significante no corpo”[15], promotor da radicalidade do gozo que se é.
Um amor mais digno
Com a “marca do atravessamento das identificações”, um novo amor, um amor mais digno, por incluir o real do gozo. O amor mais digno, diz Laurent, é a “articulação dessa loucura que está sempre por um fio nas questões do amor”[16]. Ele lembra que no digno há das Ding. O amor seria elevar um objeto à posição d’A Coisa.
Esta dimensão inédita do amor-sinthomático, por incluir toda a carga do gozo (impuro, infiel, não recíproco), é um “amor menos tonto”[17]; é um amor que faz ressoar no laço com o parceiro sexual a impossibilidade da relação sexual e, desse modo, “oferecer à existência um furo através do qual possa respirar”[18]. Seguindo a erótica da contingência, os parceiros podem se enlaçar a partir de seus Uns-sozinhos, desfrutando da arte do encontro desenhado no instante de uma vida.