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O que está acontecendo com a democracia?


lacan21 - 24 de junho de 2022 - 0 comments

Carlos Márquez (NEL/AMP)

Primeira afirmação: A democracia não é eletiva nem tem alternativa.

Não é possível antepor outro estado de coisas que, por sua suposta força, eficiência, estabilidade ou justiça, chegue a ter proeminência sobre ela.

Tampouco é equivoca: é a maneira como se realiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este não é um simples instrumento jurídico que serve como orientação moral, mas constituem o tecido mesmo da subjetividade contemporânea; o patamar de semblante que se reforça com cada brilho de dignidade, ou de ausência dela; é o material no qual se enredam os sintomas dos falantes contemporâneos e, neste enredo, no nível dos corpos, o dispositivo dos Direitos Humanos encontra seu fundamento em um real.

As justificativas para as diferentes formas de despotismos pseudorepublicanos ou neomonáquicos, por outro lado, são simulacros mais ou menos delirantes, em relação com este patamar de semblante que se instalou em diferentes viradas históricas, mas que chega a seu ponto culminante em 1948. Estes simulacros prosperam durante um tempo e em espaços delimitados da superfície geopolítica, até que batam de frente com a força da aparente debilidade da democracia.

Segunda afirmação: A democracia é profundamente insatisfatória.

Custa muito estabelecê-la e mantê-la, porém custa muito menos perdê-la ou corrompê-la. Há, pois, uma relação de exclusão entre democracia e gozo. Parece que  o gozo da política se perde conforme a democracia se consolida.  Mas,  quando falta a democracia, se faz imprescindível, ansiada, desejada. O despotismo é da ordem da recuperação do gozo, mas a democracia existe na mesma lógica que o desejo.

A existência na dimensão global do universal do concreto dos direitos humanos implica um tédio dos ritos desta nova religião, a mais intranscendente jamais formulada. Esta perda de gozo está no fundamento do atrativo dos despotismos. A democracia por estrutura produz os despotismos que reavivam o desejo de democracia.

O déspota é quem condensa o gozo de se situar  por cima da lei republicana, aquele que começa por falar no público aquilo que se supõe que não se deve falar senão no privado e termina por reduzir aos oponentes a objetos de seu gozo. Ao rejeitar para ele o mandamento republicano da igualdade perante a lei, congrega as massas, que gozam ao contemplar sua excepcionalidade, desconjuntando o novo universo democrático que se reflete assim em uma fragilidade extrema. Porque, frente ao monarca, identificado com a lei para poder governar, só se encontrava a moral, porém frente ao déspota, identificado com a moral para quebrar a lei, já não fica mais que o corpo desumanizado dos contraditores.

Terceira afirmação: a democracia aparenta ser somente um mecanismo de administração  procedimental do poder até que uma ameaça existencial global a revela como uma idéia-força.

A democracia existe para sustentar o direito à debilidade do indivíduo, excluindo seu gozo. No despotismo, os indivíduos, massificados, amparam seu gozo em um novo poder por cima da lei, usando os mesmos meios de organização da república. Porém, o sol republicano hoje não se põe em nenhum lugar da terra.

A democracia já triunfou de maneira universal. Este universal, pela força de sua própria dialética interna, vem se expandindo até abrigar  toda a humanidade. Desde o ciclo revolucionário atlântico até a Segunda Guerra Mundial, cada vez mais as guerras se transformaram, de modernas confrontações entre forças nacionais, em agônicas guerras justas contrárias ao despotismo.

Nesse mesmo nível global ou universal concreto sobrevivem em perigosas contradições a tecnologia, a ecologia e a vida social.  Os direitos humanos são o ponto de orientação frente a cada uma dessas contradições, mas, ao mesmo tempo, é o lugar do discurso a partir do qual sempre estamos em falta, conosco e com os outros. São inatingíveis e normativos, motivos pelos quaisl, a partir de esse desse lugar, emana uma pestilência de mal- estar permanente, fundamento do despotismo.

Quarta afirmação: há um losango entre o nascimento da psicanálise e o assenso da democracia global.

Ao produzir uma nova república sinthomática onde antes estava o absolutismo do eu, a psicanálise coloca, no nível do falante, o que fica excluído no nível global. O projeto que Miller chama “uma humanidade analisante” poderia conjurar a necessidade de nos entregar ao despotismo para recuperarmos o gozo que perdemos com a democracia.

Não podemos deixar este trabalho exclusivamente aos políticos quando os últimos acontecimentos na Ucrânia nos mostram que boa parte da esquerda e da direita confluem no  projeto despótico e, num redivivo pacto Molotov-Ribbenttrop, declaram guerra à globalização dos direitos humanos, propondo abertamente seu projeto:  que nos tratemos   uns aos outros  não como gostaríamos ser, mas como o que somos.

Não é possível formular um direito humano ao ódio e à destruição do próximo, mas podemos, sim, formular um direito humano a se psicanalisar. Não são somente os psicanalistas que necessitamos da democracia para poder trabalhar, a democracia necessita da psicanálise para que não se perca a República.

E com ela, a capacidade política para lidar com as ameaçantes contradições globais que ela mesma gera. Temos que repartir melhor a riqueza para que cada um possa encontrar seu próprio arranjo com o gozo-extra-direitos-humanos. O que faz com que a psicanálise tenha se  convertido numa necessidade existencial da república, de modo que a colheita seja cada vez maior, mas ainda somos muito pouco operários.