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O tóxico pai e a resposta freudiana


lacan21 - 10 de abril de 2017 - 0 comments

Carlos Márquez (NEL)

Já para 1948 “Admirável mundo novo”, publicado dezesseis anos antes, era um acontecimento literário. Não é de estranhar que George Orwell fizesse chegar a seu autor, Aldous Huxley, um exemplar de seu romance “1984”, recém publicado. Huxley respondeu-lhe com uma carta como gérmen de uma discussão que apresenta certo interesse para nós, dadas as analogias que se fazem a torto e a direito entre esses romances e nossa atualidade.

A tese forte da carta é que o primeiro filósofo da revolução definitiva é Sade e que Orwell levou a teoria sadiana a sua conclusão lógica. Este estado de coisas é impossível de se sustentar no tempo segundo Huxley, porque seria mais prático para a oligarquia dominante seduzir as massas atravésdo prazer e condicioná-las a amar a vida que levam. A tese encontrará um eco em “Regresso ao admirável mundo novo” em 1958, em cujo primeiro ensaio, e depois de repetir que lhe parece brilhante o romance de Orwell, Huxley coloca novamente que aquele teria se equivocado em suas antecipações e que o mundo do futuro será mais parecido ao descrito em “Admirável mundo novo”.

Para nós, leitores de Freud do “Mais além do principio do prazer” e de Lacan que articula a noção de gozo, não é nada surpreendente que um determinado estado social consiga preservar-se produzindo massivamente um tipo de satisfação que nada tem a ver com a noção de utilidade ou de bem-estar, senão com o desperdiço do tempo vital dos falantes e um permanente e agudo aumento do sofrimento.

Em “Regresso…”, Huxley continuará apostando no tipo de dominação mais benévola do que imaginou em “Admirável mundo novo”. Sua única retificação será a de que o que ele tinha previsto para dentro de quatrocentos anos já estava sendo realizado em sua geração. Se “1984” pode ser tomado como uma resposta ao levantado em “Admirável mundo novo”; a carta de Huxley a Orwell (1949) e esse primeiro ensaio (1958) é uma tentativa de reavivar uma discussão que parece resolvida pela potencia das teses de Orwell e em detrimento das de Huxley; potência redobrada porque nem“1984” nem “Rebelião na Granja” tratavam-se simplesmente de uma “projeção” para o futuro, senão de uma alegoria do que havia experimentado na Europa do estalinismo e do nazismo.

Não há que tomá-las como “profecias”, porém não devem ser relegadas como simples caricaturas.  Muito se abusa de suas metáforas e muito assombro produzem as associações com tal ou qual traço da atualidade. Mas, encontramos que seu valor epistêmico se esclarece quando as tomamos como tipos ideais ao modo da sociologia weberiana. Isto em nossos termos se traduziria como uma apresentação da estrutura das coisas de tal modo que desempenha a função de um matema.

A discussão de Huxley com Orwell é sobre qual dos pacotes de dispositivos biopolíticos em desenvolvimento teria a preeminência no novo mundo que foi constituído a partir da Grande Guerra e que encontra sua versão mais acabada com a decomposição da ordem estabelecida pelos “Catorze Pontos”. Momento de fratura para o estudo das relações internacionais, a economia e a política, porém também para a psicanálise. Não é necessário lembrar que é a partir da época da finalização da Grande Guerra que Freud faz a virada para a pulsão de morte, a psicologia das massas e sua segunda tópica. O que lhe permite desembocar em uma clínica do superego à altura de “O Mal-estar na Civilização”. Adicionalmente Freud adjudicará parte da responsabilidade pela desastrosa situação das potencias centrais no período de entre guerras ao delirante idealismo pacifista do impulsor dos “Catorze Pontos”.

É uma discussão relevante somente se a entendermos com relação à posição que nosso discurso tem nela. Não é um terceiro que venha para regular, pôr ordem. Esse nicho já está bastante concorrido com toda classe de instâncias burocráticas supranacionais, o papado ou as ONGs. Nosso discurso é um terceiro excluído, cuja aparição produz um traumatismo desde o ponto de vista de qualquer uma das duas estratégias de biopoder das quais “1984” e “Admirável mundo novo” constituiriam tipos ideais. É esta posição que determina a necessidade de a psicanálise manter o esforço continuado de fazer-se um lugar entre os demais discursos.

A realização lógica da revolução definitiva sadiana descrita em “1984” pode ser caracterizada por uma definição do futuro desde o ponto de vista do partido e que aparece no mesmo romance; é a estratégia de “a bota esmagando um rosto humano incessantemente”. A de “Admirável mundo novo” podemos chamá-la como a do “apaziguamento hedonista”. Mas, no coração da discussão Huxley versus Orwell há uma serie de acordos implícitos. Os dois modelos têm em comum que são sintomáticos, coletivos e planetários. Sintomáticos porque não excluem o problema da satisfação dos corpos, senão que está no centro de suas preocupações pondo a seu serviço qualquer referência aos ideais, de modo que seu êxito em produzir a desejada estabilidade social está dado por sua capacidade de produzir gozo. Coletivos, porque ainda que de maneira contrastante ambos colocam o indivíduo, seus direitos e sua felicidade, como a meta suprema do social; esta ênfase mascara a homogeneização e segmentação das modalidades de satisfação. E, planetários, porque são estratégias que têm como finalidade última o controle da totalidade do vivente.

Porém, nos fixaremos fundamentalmente em outro traço. Qualquer que seja o êxito potencial de cada pacote de dispositivos, seja através da “bota na cara” ou do apaziguamento hedonista, consistirá em um tratamento do desejo indestrutível, esse que faz sua aparição na última linha de “A interpretação dos sonhos”. Assim interpretamos que em ambos romances o Outro esteja empenhado em fazer desaparecer o erotismo.

Na primeira estratégia, a da “bota na cara”, a satisfação pela via do sofrimento sacrificial a deuses obscuros em prol da ordem superior, cumpre o papel de estabilizador social através da suspensão dos acontecimentos. Ainda que quase ninguém acredite nesses deuses obscuros, em dito regime todos se vêem compelidos a dissimular constantemente e viver em um “como se”, que leva o nome técnico do “duplo pensar”.

Reparar o pai através de uma hiperinflação do poder estatal e da imagem destes pró-homens heroicos e fortes, que se apresentam como sem nenhum tipo de limites, é um empreendimento quase sempre de curto prazo e na periferia. De curto prazo, o concedemos a Huxley, pois são esquemas tão ineficientes, tão contraditórios consigo mesmo, tão no limite do ridiculamente absurdos, tão propensos à corrupção generalizada, que até agora e, salvo algumas desafortunadas exceções, não conseguiram passar de uns quantos quinquênios em seus momentos mais agudos. O que não é óbice para que, uma vez superado o pesadelo se tente novamente, uma e outra vez, de maneiras tanto mais originais quanto mais devastadoras. Anotaremos na margem que os psicanalistas muitas vezes tiveram que pagar com sua vida ou com o exílio o absoluto rechaço que este tipo de organização social tem por seu discurso.

Na periferia, como o teorizaram os leninistas, dado que o tecido do capitalismo uma vez que acabou de se deslastrar do que restava da monarquia absoluta, somente pode ser rasgado através de seus pontos mais débeis; o que não obsta para que possam aparecer seus representantes nos centros das chamadas “democracias avançadas” como se fossem ondas epidêmicas.

Na segunda estratégia, a do “apaziguamento hedonista”, o cimento social está colocado no prazer. Este projeto não pode ser alcançado senão através do suplemento da medicalização generalizada dos corpos. Esta é a função do uso do “soma” em “Admirável mundo novo”. Que “cura dez sentimentos melancólicos e tem todas as vantagens do cristianismo e do álcool sem nenhum de seus efeitos secundários”. Esta estratégia é de grande fôlego: fazer uma suplência do pai através da sedução sugestiva, a inoculação de um desejo domesticável que mascare o desejo indestrutível singular, cimentado com a intervenção constante no corpo a travésdo tóxico. É o tóxico como pai finalmente eficaz. A tentativa de fazer curto-circuito como corpo real para resolvero que nunca pôde sefazer pela via do simbólico: “Levar o terror a um nível aceitável para ambas as partes”.1

Seu valor de controle social se faz apreciar muito bem no uso policial e de dispositivo da ordem pública que se lhe da em “Admirável mundo novo”, junto como chamado à irmandade social. Também o podemos encontrar em um detalhe do segundo capítulo da primeira temporada de Black Mirror chamado “Fifteen million merits”. Em um futuro governado por telas, quando a protagonista depois de cantar inocentemente em um programa de concursos, aproveitando o presente que lhe fez galantemente o protagonista, é convidada na frente de todos a dedicar-se à pornografia. O júri do programa de concursos lhe diz algo assim como: “dedica-te a isto e não precisarás trabalhar nunca mais, não se preocupe com a vergonha, será medicada”.

Pois, se em “1984” o encontro entre os corpos é reduzido a cumprir o dever de dar novos soldados para o partido, e substituído por “os dois minutos de ódio” e o que esse mestre do “duplo pensar” chamado Nikita Kruschev chamou de “culto à personalidade”, em “Admirável mundo novo” o erotismo é derrotado através da perda de sentido do coito. Essa que Miller(2014) equipara coma perda de sentido que operou o terror sobre a morte, apoiando-se para isso na Fenomenologia do Espírito. Uma sociedade que descobriu que não existe a relação sexual e que por tanto pode comercializar o gozo sexual até… como um suplemento terapêutico.

Poderia se dizer que desde um ponto de vista estrutural, o que é o soma em “Admirável mundo novo” é a cachaça barata em “1984” e o que é o castigo desenhado para cada um em “1984” é a ridicularização do específico e do apaixonamento em “Admirável mundo novo”.

Também é comum aos dois romances a convicção de que para fazer esse tratamento do desejo indestrutível há que deter a historia. Para nós psicanalistas a historia não progride, porém tampouco fica detida. Desenvolve-se no tempo da repetição até que se resolve através de um ato. Esse ato é impossível em “1984” e somente pode desembocar em um suicídio em “Admirável mundo novo”. De tal modo que as duas estratégias encontram na destruição do corpo o último recurso para tratar o que resta de inexpugnável nele.

Revisitados e relidos com atenção, os dois romances apresentam cada um sua estratégia com diferente ênfase. Por isso a tentativa de Huxley a respeito de Orwell é ociosa. Em primeiro lugar porque não diferem no mais mínimo em termos estruturais; e em segundo lugar, porque obviamente têm duas finalidades diferentes. Enquanto Huxley quer fazer profilaxia da complacência dos falantes com sua própria dominação, Orwell está denunciando o que é um fato consumado na historia; com a emergência dos totalitarismos a estratégia da bota na cara provou sua eficácia, pelo menos por períodos curtos e agudos de um tempo que se eterniza pela capacidade social de produzir sofrimento aos indivíduos.

Vamos simplificar e dizer que ambas as estratégias vêm responder com diferente ênfase a dois problemas do século XX, com os quais nós psicanalistas estamos familiarizados. Em primeiro lugar o problema do declínio da função paterna e em segundo lugar o problema de um resto no corpo que não se submete à domesticação.

Se tomarmos o caso Dora, peranteo primeiro problema Freud se empenha em sustentar a posição preponderante do pai e do Sr. K em detrimento da posição da mãe e da Sra. K. Isto apesar de que com isso dá rodeios desnecessários na compreensão do caso e falha na interpretação, até conduzir a uma situação na transferência onde Freud acaba do lado de “os homens” e torna a análise impossível para Dora. Porém, este empenho é uma aposta pelo sintoma apontando para a identificação de Dora com o gozo de seu pai, no eixo do real-simbólico, e contra uma psicoterapêutica do laço social representado pelo quarteto amoroso, que é o que demanda o pai de Dora a Freud, mais do lado do eixo do simbólico-imaginário. O problema para nós agora é como o aparelho de gozo de Dora usa o que está a sua disposição. Neste sentido um detalhe se destaca da nota introdutória de Strachey ao texto, onde cita a carta 141 a Fliess na que Freud nomeia Dora como uma “típica chupadora” (FREUD, 2000, pág. 4). Este detalhe esclarece o traço pelo qual Freud se orienta para o trabalho.

Isto encontra no conceito fundamental da transferência uma orientação. Desde o ponto de vista da psicanálise atual haveria que se perguntar se não se refere aos modos como o falante se serve do dispositivo analítico, no mesmo sentido de como seu funcionamento de gozo tem-se servido de outros dispositivos como o Édipo, se fosse o caso. Mais além do fracasso confessado por Freud no manejo da transferência de Dora, o esclarecimento que ela obtém do trabalho analítico lhe serve para reeditar a trama posterior a cena do lago. Só que nesta nova edição dessa trama Dora, aproveitando sem dúvidas um momento de debilidade do adversário, consegue uma retificação de todos os atores da trama, e pode aceder ela mesma ao homem.

Como não há psicanálise tipo, Freud toma isto como uma resolução. A prova está não somente em que tenha acedido a casar-se, senão em que tenha recorrido a Freud no momento dar é – emergência de um de seus sintomas. Quer dizer, foi resolvida a transferência negativa e o psicanalista ficou reduzido a seu valor de uso. Coisa que Freud assume claramente ao não tentar levá-la novamente para o divã, senão esclarece-lhe este movimento para que possa continuar com sua vida.

O segundo problema, o do resto indómito no corpo, não se distingue do primeiro senão por razões de exposição. Aqui nos orienta o empenho de Freud em sustentar algo da  ordem do orgânico de maneira transversal durante todo o texto do caso. No epílogo faz a distinção entre o “orgânico” e o anatomopatológico (FREUD, 2000, pág. 99). O que nos indica um corpo diferente do corpo médico. Outra causalidade se esconde ali, mais além da discussão da época entre a causalidade anatomopatológica e a causalidade psíquica. É a causalidade do corpo como tal, resto da operação epistêmica freudiana de substituição da causalidade orgânica pela causalidade psíquica e da conseguinte mudança da base de operações de sua ação desde o aparelho neuronal do “Projeto de psicologia para neurólogos” para o aparelho psíquico de “A interpretação dos sonhos”. Este problema pode ser lido como uma aposta por um resto mais além do reconhecimento da causalidade psíquica.

Esse parágrafo termina com a conclusão de que o mais próximo dos quadros patológicos de “as psiconeuroses genuínas são os de intoxicação e abstinência, no caso de uso crónico de certos venenos” (Ibid.). É o esclarecimento de Um Real que está no corpo e que usa tanto o aparelho psíquico como o organismo assim como um toxicómano usa as relações entre o Outro, seu corpo e o gozo que se obtêm de essa relação. Freud eleva assim o funcionamento do toxicômano à função de paradigma das relações do falante com seu corpo, seu gozo e o Outro.

Não se trata de indivíduos vítimas da sociedade. Se forem possíveis modelos sociais que promovem o enganche do falante em modalidades de satisfação masoquista ou através do uso do tóxico como regulador social, é porque algo no falante está aguardando por esta oportunidade. Depois de declinados os significantes fundamentais da ordem anterior, este funcionamento fica a céu aberto, é possível, e até certo ponto era um movimento logicamente necessário.

Dito isto, então, também é possível uma redefinição das relações do falante, um por um, com seu próprio aparelho de gozo. Este realismo extremo é a resposta que dá à psicanálise as estratégias biopolíticas que temos examinado.

Tradução: Pablo Sauce
NOTAS
1 Esta frase éatribuída ao Presidente dos Estados Unidos G.W. Bush, no marco de uma conferência sobre a paz entre israelenses e palestinos. Durante a década passada proliferaram na rede as listas dos denominados “bushismos”, elaborações de linguagem sumamente curiosas de este personagem que podeter sido o mais estranho que tenhaconseguidochegar até a Casa Branca depois de Woodrow Wilson, pelo menos até pouco tempo atrás.

 

Bibliografía
FREUD, S. (2000). Fragmentos de análisis de un caso de histeria (Dora). En Obras Completas, Volumen VII. Buenos Aires: Amorrortu.
FREUD, S. (s.f.). El presidente Thomas Woodrow Wilson. Un estudio psicológico. Recuperado el 01 de enero de 2017, de https://tuvntana.files.wordpress.com/2015/06/texto-sigmund-freud-otros-trabajos.pdf
HUXLEY, A. (21 de octubre de 1949). Estimado Orwell. Recuperado el 01 de enero de 2017, de El Cultural: http://www.elcultural.com/revista/letras/Estimado-Orwell/34145
HUXLEY, A. (1958). Nueva visita a un mundo feliz. Librodot.com.
MILLER, J.-A. (2014). El Inconsciente y el Cuerpo Hablante. Recuperado el 09 de 01 de 2017, de wapol.org: http://wapol.org/es/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=1&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=1
ORWELL, G. (2000). 1984. Madrid: Mestas.