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Pais tóxicos, filhos intoxicados


lacan21 - 10 de abril de 2017 - 0 comments

Elvira Dianno (EOL-AMP)

Falar a língua do Outro, sim, mas para dizer o que o Outro não quer escutar.

Jacques-Alain Miller1

Atribui-se a Susan Foward, psicóloga norte-americana, a expressão país tóxicos que marca seus best-sellers: “Pais que odeiam” (1989 USA), e “Pais tóxicos: superando o seu legado ferido e reclamando sua vida” (1990 USA). A autora escreveu ainda: “Sogros destrutivos”, “Por que mentem os homens”, “Mães que não podem amar: um guia curativo para filhas”, “Homens que odeiam as mulheres e mulheres que os amam”, entre outros.

Bibliografia de cabeceira de coachers, conselheiros, educadores, reeducadores, pais, psicólogos e psiquiatras da Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) e da recém criada psicoinmunoneuroendocrinologia, estende a todo tipo de relação chamada patológica o termo codepedente, tomado do glossário  das Comunidades Terapêuticas, (CT) do início dos anos 80. O termo nomeia a relação de quem, sem ser adicto de substâncias,  sustenta o consumo do  adicto. Mulheres de espírito messiânico ou samaritano (mães, esposas, noivas, amantes), que funcionam como supporting de homens decaídos entregues aos vícios, e às más companhias; e elas por sua vez aprisionadas a estes vínculos adictivos.

Padrões de comportamentos funcionais se estenderiam à modalidade que o Alcoólicos Anônimos (A.A.)  estabeleceram  nos anos  30. Há um caminho para todos saírem das adicções do álcool, das drogas, e das pessoas. Siga seus 12 passos, just do it! Esta modalidade se propagou entre os fóbicos, acometidos pelo pânico, bulímicos, anoréxicos, compradores compulsivos, adictos por jogo, chegou aos violentos, parceiros e pais tóxicos, mulheres dependentes e emocionalmente adictas.

No fim das contas, a toxicomania foi generalizada da gíria a terapêutica dos sintomas, síndromes, medicação e behaviors rehabs como o coloca Sinatra em seu libro Tudo sobre as drogas?2

O Dez Mandamentos dos pais tóxicos

Os quatro tipos de país tóxicos – laissez faire; democráticos; sacrificados e autoritários – acrescenta-se um autoteste doméstico para identificá-los: manipuladores, tiranos, autoritários, exigentes, intransigentes, abusadores físicos e/os verbais, críticos, superprotetores, e os que culpabilizam.

Pais tóxicos, filhos intoxicados, algozes e vítimas, alguém pode fazer-se de adicto para outro e/ou intoxica-lo. A substância da qual somos feitos é assim potencialmente adictiva e intoxicante.

A generalização de conceitos e epistemologia também estendeu a forte convicção de que o mal é o Outro. O mal está no Outro: drogas, pais, parceiros.

Resumo 1 –  Receitas entorpecentes para relações  tóxicas

Há pais maus que odeiam, e pais bons que amam entre ambas as fronteiras os walking-dead da civilização pós-pai, ignorantes, desumanizados, sem responsabilidade pelos rumos que vida toma, conduzidos por deuses obscuros, e vitimas da sorte, podem cair nas drogas, nas garras de país que odeiam ou de parcerias adictivas.

Capítulo à parte, mães que odeiam as suas filhas, que por sua vez amam homens que as odeiam. Dificilmente alguém fica isento de reconhecer-se em alguma destas adversidades. Como caminho de pólvora se expandiram oficinas e grandes eventos cheios de receitas de amor,  felicidade e  perdão por alto-falante. Um mundo de explicações e receitas naif ao alcance da mão e do bolso entorpece mais e mais.

Do tóxico ao gozo, o modo Jano da pulsão

Mas caso se queira pensar a condição humana pelo modo Jano de reversibilidade – bom e mau, amor e ódio, prazer e desprazer –  podemos localizar o gozo, termo cunhado por  Lacan como a fita que amarra duas pulsões que se sucedem em uma escorregadia estrada moebiana na qual – ao avançar – o excesso de velocidade   conduziria  ao seu ponto contrário. Ou seja, este excesso se volta contra. Nem a pulsão de vida se livraria de terminar batendo de cara no muro da pulsão de morte, como apontou Freud. Dead line, no fim das contas, a única coisa que se pode pedir é que a chegada atrase e que o passeio se torne mais agradável.

Amor e ódio em indissolúvel união conjugal excluem a possibilidade de pais que não odeiem.

Estamos cientes que a toxicidade das drogas é o anel no dedo do gozo,  que vem no lugar de  não-há-relação-sexual, do vazio de satisfação, tratamento da castração com o real, com o real do tóxico e não com uma ficção. É o coração da operação toxicômana: mais gozo, menos castração. 3

Toxicidade parental: mães estrago, pais decaídos, filhos reais

Porém, mais além das drogas, “o gozo no ser humano é tóxico” 4, assinala Tarrab. Nada é sem gozo. Todos adictos do gozo.

Como pensar pais tóxicos ao lado do que localizamos como o estrago materno e a queda do Nome-do- Pai? Crocodilos de boca aberta, parceiras certas olhando outra cena. Não caberia aqui repetir os efeitos da fuga por debandada dos adultos de sua função como efeito, entre outras coisas, da insistente tarefa que se instituiu depois da 1ª guerra mundial, puxar a corda para destruir um pai cruel, autoritário, inflexível, até deixá-lo em cacos. Nenhuma nostalgia do pai, “Abaixo o Pai!”, nos assinala Miller em Sorano5, que nessa apresentação do Seminário 66, falava do pai de Hamlet o qual, estava morto e não sabia. Comentamos recentemente o romance de Christine Angot “Uma semana de férias” 7 que apresenta um pai que poderíamos chamar de tóxico, não passa pela regulação do Outro,  dono de todos os gozos, um pai que pode ser o mesmo em tempos pré e pós queda do Nome-do-Pai. Do que poderíamos inferir: mais que tóxico, um pai mais do lado do onanismo do que do narcisismo, mais do incesto do que da paternidade.

Então, como localizar pais tóxicos, pais que gozam “para ” seus filhos, que gozam “de” seus filhos? Pais que colocaram o filho no lugar de objeto, pais que têm deixado o seu reino nas mãos de his majesty the baby?

Já em Freud encontramos coordenadas que nos permitem apreender a toxicidade do gozo. A toxicidade da libido em suas lições sobre o Onanismo como adicção fundamental, e em suas conversas com Abraham. Na Introdução ao narcisismo localizará o que poderíamos denominar de “introdução a possível toxidade da paternidade”. Referindo-se ao narcisismo primário que supomos na criança, destaca “[…] prevalece uma compulsão em atribuir a criança  toda classe de perfeição[…] e  a encobrir e esquecer todos os seus defeitos… as leis da natureza e da sociedade hão de  cessar perante ela,[…] Centro e  núcleo da criação. His Majesty the Baby [] Deve realizar os sonhos, os  irrealizados desejos de seus pais[ … ] O comovente amor parental, tão infantil no fundo, não é outra coisa que o  narcisismo ressuscitado dos pais, que em sua transmutação ao amor de objeto revela de forma inequívoca sua primitiva natureza”8.

Resumo 2 – Paternidade nao-toda tóxica

Se o gozo é tóxico, nada é sem gozo, pode um pai, uma mãe, um filho, subtrair o gozo nestes laços? De forma diferente da uniformidade de gozos que propõe a TCC e suas subsidiárias, entorpecendo subjetividade e a possibilidade de amarrações particulares para cada hystorização, talvez, no um por um, o ponto a investigar seria: uma paternidade que tome um atalho mais além do puro narcisismo e do autoerotismo; investigar os laços de amor sem ignorar o tóxico do gozo seria uma via a transitar.

Vinheta – O mercado dos filhos ideais9

Um canal madrileno, em imperdíveis 90 minutos, entrevista mulheres de idade e condição social mediana, dois maridos, uma avó e por fim uma psicoterapeuta. A jornalista não deixou em nenhum momento de mostrar que estava decidida a fazer uma surpreendente matéria sobre estas mulheres adotantes, mas deixando claro que não avalizava nem compartilhava de suas extravagâncias maternais.

Mães de bebês adotivos pelo que teriam pago entre 300 e 2000, cada um! Algumas mostraram o seu exagerado interesse por eles ao ponto de ter não apenas um, podiam contar-se dúzias, dispunham de vultosas peças de vestuários para todo tipo de ocasião e clima, e um amplo conjunto de acessórios próprios para um bebê urbano: carrinho, cadeira de balanço, banheira, brinquedos para o berço.

Estavam agasalhados para o rigor do inverno, e a jornalista se encorajou a acompanhar algumas das mães aos seus passeios no metrô e nas calçadas em elegantes carros, entre o olhar curioso e surpreso dos transeuntes, até que alguém comentou, “que bonita! Parece uma boneca”.

Foi a jornalista quem –  para o riso dos que se detiveram ao redor confirmou –  “Pois, é o que é”.

Os Reborn, bonecos10 fabricados em um material que se assemelha a pele humana, com traços faciais únicos, exclusivos, passeiam no assento traseiro dos carros com cinto de segurança e cadeira de passeio. Banham-se em banheiras de espuma mornas e perfumadas, comem em cadeiras de refeição papas especiais, e são embalados com canção de ninar. Chamado por seu nome de série original ou rebatizado por seus adotantes geram ao seu redor um consumo inusitado e todo o merchandising típico de um bebê afortunado. É importante destacar que suas mães adotivas costumam também ter filhos de carne e osso, ou estão a caminho de tê-lo.

Entre as razões apresentadas para a adoção – as senhoras como as de outrora – disseram que era muito bonito ter filhos que não cresceriam e que ficariam para sempre com elas. “Não dão nenhum tipo de trabalho, só satisfação”, indicou uma delas.

Feitos de silicone, pode-se até beliscar, pesam em torno de 3 kg. Segundo os especialistas consultados –  coachers familiares – a adoção das bonecas  não significaria nenhum tipo de patologia, só fariam parte do consumo de colecionadores extravagantes.

Resumo 3 – Filhos gadjets

Filhos para mostrar, mais além da castração, no fim das contas, país de filhos que dão “só satisfação”, disso se trataria ter pais tóxicos?

Pais tóxicos – filho objeto elevado ao zênite, nem todos serão Reborns, alguns de carne e osso – que podem ser abandonados no sótão uma vez que se perca o interesse – brincar com as bonecas sem que nada do real lhes toque, nem do amor é claro. Pais selfie, olhando-se no reflexo de seu próprio gozo, sem nenhuma barradura.

Tradução: Jussara Jovita Souza da Rosa
1 http://www.fapol.org/es/notas/3
2 Sinatra, Ernesto, ¿Todo sobre las drogas? Grama, Buenos Aires 2010 p.13/4
3 Tarrab, Mauricio, una experiencia vacía, Pharmakon 6/7, Plural editores, La Paz 1998 p.38
4 Tarrab, Mauricio, La sustancia, el cuerpo y el goce toxicómano, en Más allá de las drogas, Plural Editores, La Paz, 2000.
5 Jacques Alain Miller en el teatro Sorano, video subtitulado por Silvia Baudini
6 Lacan, J.- Seminario 6 El deseo y su interpretación, Paidós, Buenos Aires, 2013
7 Angot, Christine, Una semana de vacaciones, Anagrama, Paris, 2012
8 Freud, Sigmund, “Introducción al narcisismo, Amorrortu, Buenos Aires, 1992,Tomo XIV, p 87/8
9 Dianno, Elvira “El flaneur en la ranura”, post N°1 Publicado en http://sedici.unlp.edu.ar/bitstream/handle/10915/53308/Documento_completo__.pdf-PDFA.pdf?sequence=1
10 http://www.elmundo.es/cronica/2014/05/11/536de1e6e2704e72568b456c.html

 

Bibliografía
Miller, J.- A. Para una investigación del goce autoerótico en Sujeto, Goce y Modernidad, Atuel TyA, Buenos Aires, 1993, p. 13-22
Laurent, Eric  Tres observaciones  sobre la toxicomanía en Sujeto, Goce y Modernidad II, Atuel TyA, Buenos Aires, 1994, p.15-21
Susan Forward http://www.susanforward.com/
Codependencia http://www.mentalhealthamerica.net/co-dependency